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terça-feira, 8 de julho de 2008

Históricos

MARCHA SOBRE A CIDADE

Era o ano de 1979 e a música instrumental estava passando por uma série de mudanças mercadológicas e estéticas. No Brasil estava começando a abertura do mercado através de lançamentos independentes. Na Europa existia um movimento em torno da gravadora ECM records, que lançava discos de jazz com uma estética própria. Nos Estados Unidos existiam várias tendências, desde o radicalismo tradicionalista até o experimentalismo eletrônico que se desdobrava em diversas tendências. “Marcha Sobre a Cidade” surge exatamente nessa efervescência.

Há quem afirme que esse é de fato o primeiro disco independente da música instrumental brasileira, mas há quem aponte os lançamentos históricos de Antônio Adolfo e outros músicos, como sendo os pioneiros. Isso não importa. O que vale mesmo é que o Grupo Um fazia música de altíssima qualidade, em um nível de improvisação extremamente complexo e com uma capacidade criativa fora do normal.

A banda paulistana ainda lançaria mais dois discos: “Reflexões sobre a crise do desejo”, em 1981 e “A flor de plástico incinerada”, em 1982, todos com a mesma pegada fenomenal de sempre e com um raro senso de improvisação, a verdadeira alma do jazz. Sem delírios instrumentais sobre uma base harmônica o jazz fica enfadonho e triste. E é exatamente esse o diferencial do Grupo Um em relação às outras bandas independentes do período, como Pé ante Pé; Metalurgia; Pau Brasil; Medusa; Divina Encrenca; e vários outros.

As incursões pelo free jazz; pelo primitivismo étnico; pelo abstracionismo da música impressionista; pela fragmentação da música minimalista; pelos ruídos e intervenções da música concreta; pelas células harmônicas e melódicas da música de câmera contemporânea; bem como pelas harmonias complexas da música brasileira; além das inúmeras experiências atonais do jazz contemporâneo, projetam o Grupo Um para além do novo tradicionalismo careta dos irmãos Marsalis e muito próximo do experimentalismo das improvisações de Ornett Collemam, Pharoah Sanders, Sun Ra, e bandas como o Art Ensemble of Chicago.

A cozinha original do Grupo Um: Zé Eduardo Nazário e Zeca Assumpção, respectivamente, bateria e baixo, trabalhou com Egberto Gismonti durante alguns anos da década de 70, e fez parte de uma das várias obras-primas dele, o disco “Nó Caipira”. Além disso eles eram a banda de apoio de Hermeto Pascoal em São Paulo. Nem precisa comentar nada, uma apresentação dessas já basta. Além deles a banda ainda contava com os sopros de Mauro Senise, que também fez inúmeros trabalhos com Egberto Gismonti e a alucinação sonora de Lelo Nazário, um dos maiores pianistas e criadores de todos os tempos da música brasileira. Dono de uma visão extremamente particular sobre estética musical, um verdadeiro mago.

Muitos discos fenomenais foram lançados na década de 70, nesse segmento de música instrumental. Miles Davis; Keith Jarret; Chik Corea; Al Di Meola; Herbie Hancok; Lee Retnour; Jeremy Steigh; Eddie Gómez; Tom Scott; Mahavishnu Orchestra; Billy Cobaham; Jaco Pastorius; Toninho Horta, Hélio Delmiro; Pat Martino; Oregon; Soft Machine; L. A. Express; Jonh Abercrombie; Terj Rapdal; Bill Evans, Whether Report, Flora Purim, Raul de Sousa, Airton Moreira e tantos outros artistas essenciais lançaram discos históricos, mas nenhum me impressionou tanto quanto “Marcha sobre a cidade”. Esse é um disco que juntou tudo o que eu tinha escutado até o período, através do trabalho jazzístico de vários artistas, de diversas tendências, mas com a tenacidade e a pauleira do jazz-rock, sem ser de forma nenhuma uma sonoridade rockeira. A faixa que dá título ao disco é uma verdadeira marca registrada do jazz universal.

Lelo Nazário se queixa, nas notas da capa do relançamento em cd, da incompreensão dos críticos brasileiros sobre o princípio criador do free-jazz. Isso é histórico e não vai acabar nunca, pois a crítica brasileira é careta. Essa mesma crítica, dita especializada, que tem “grande apreço pela música de vanguarda”, principalmente a crítica paulista, foi incapaz de reconhecer as influências massacrantes de Frank Zappa no disco Clara Crocodilo de Arrigo Barnabé, como ela mesma foi incapaz de reconhecer o valor do Grupo Um, taxando a sua música de cerebral.

No entanto, o que se tinha na mão naquele ano de 1979, era um dos discos mais importantes da música instrumental brasileira. Um disco histórico em todas as suas dimensões. Essa é uma verdadeira aula de improvisação e força criativa, só igualada pelos mestres Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal. Ouvir as escalas outsiders de Lelo Nazário e seus acordes enigmáticos, bem como a pegada estratosférica e os ruídos do sax soprano de Mauro Senise, e os andamentos aloprados de Zeca Assumpção e Zé Eduardo Nazário é uma experiência interplanetária. Isso é história pura, verdadeira e marginal.


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