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quarta-feira, 15 de outubro de 2008








Achados e Perdidos

Gentle Giant – Octopus
A criatividade imortal


Existem alguns discos que são fundamentais para determinados artistas. Outros que são fundamentais para os fãs. E outros, ainda, que são fundamentais para a própria existência de uma estética, de uma tendência como movimento artístico ou da própria música como manifestação da civilidade humana. “Octopus”, do Gentle Giant é tudo isso e mais um pouco.

Inevitavelmente existem aqueles detratores do rock progressivo. Isso é natural, uma vez que o esclarecimento não é mercadoria que se compre em supermercado, muito menos em bodegas. É claro que existem os aspectos negativos e massificantes dessa vertente do rock dos anos 70. Os diluidores existem em qualquer manifestação artística, e que não seja por eles, que tudo deverá ser nivelado por baixo. Essas conjeturas maniqueístas não excluem o Gentle Giant e nem o disco “Octopus”. Para dúvidas resta o conhecimento de causa, já que questão de gosto não se duvida, se lamenta.

“Octopus” é uma daquelas obras geniais que necessitam de manual de instruções, não pela sua prolixidade, mas pelos seus desdobramentos literários e musicais. Esse é o quarto álbum da banda britânica, formada pelos irmãos Shulman, a partir da dissolução da banda Simon Dupree and The Big Sound. O disco marca uma definição sonora da banda, que até então já contava com três discos lançados: Gentle Giant (1970); Acquiring The Taste (1971); e Three Friends (1972).
“Octopus” foi lançado em 1972 e teve pouca repercussão comercial. Parte da crítica recebeu o disco com reservas e parte dela fez caras e bocas afetadas, tal qual cafetinas hávidas por carne fresca. Vida inteligente nunca foi o forte da crítica, comprometida com os jabás e as conveniências do mercado. São inúmeros os elementos musicais que compõem as texturas de “Octopus”, uma estética que se estrutura dialeticamente entre o novo e o antigo, através de intertextualidades, metalinguagens e estranhamentos.

Além de letras irônicas, de escatologias diversas e citações literárias do autor renascentista francês François Rabelais, através dos seus personagens Pantagruel, Panurge e Gargântua, o disco contém traços da música minimalista, da música clássica de vanguarda, do concretismo, do barroco, do contraponto, das fugas, dos madrigas, do cancioneiro medieval, do folclore celta, dissonâncias infinitas, do rock, do hard rock, do blues, do soul e do pop.

“Octopus” é um disco para ser apreciado, degustado, explorado, de preferência através de um bom headfone. Não que um volume na tora não resolva de vez. Esse é um disco para contrair as bolas e dilatar as vaginas, bem como escalonar os mais longínguos recantos do cabeção. Não tem contra-indicações, a nãos ser em casos típicos de possessão cafuçú, casos em que só o suicídio social resolve.



“The Advent of Panurge” abre o disco com elegância magistral, através de uma introdução em contraponto vocal, seguida de uma levada sinuosa, com mudanças de andamentos e convenções sutis e um timbre de órgão inigualável. Vale ressaltar aqui o trabalho harmônico estruturado em fragmentos de acordes. Essa é uma faixa ambiental, cheia de texturas com a marca Gentle Giant. Uma das principais composições do rock progressivo.

“Raconteur Troubadour” é uma releitura dos sons medievais, através de uma abordagem moderna. Grande trabalho de violino e piano elétrico. Vocal para iniciados e instrumental com direito a fugas diversas. “A cry for Everyone” é um rockão nada básico, com uma pegada que flutua entre o peso e a sutileza, com o entrelaçamento harmônico e melódico típico do Gentle Giant. Essa é uma verdadeira aula de timbres e combinação instrumental. É um clássico da banda. É para ser detonada no volume 100.

“Knots” é uma peça minimalista por excelência, com intricado contraponto vocal, células harmônicas, fragmentos de acordes, fugas e e mais fugas vocais. Com certeza foi aqui que o Quenn chupou geral seus vocais. Essa é uma faixa seminal. Imperdível. Logo em seguida tem aquela da “moeda”, “The Boys in The Band”, um clássico instrumental com todo o peso da marca Gentle Giant. Essa é para ouvir e se transportar para a galáxia mais distante, de preferência escutar em algum lugar alto da Chapada do Araripe, de forma que você veja o vale inteiro, com suas luzes brilhando como estrelas no chão.



“Dog’s Life” é uma música feita para os roadies da banda e satiriza a vida cheia de correria, bebedeiras e histórias malucas. Nem por isso a qualidade cai, muito pelo contrário, predomina o experimentalismo concretista e de vanguarda, com timbres pra lá de exóticos. É a faixa mais lisérgica do disco, só para iniciados. “Think of me With Kindness” é uma balada delirante, com uma melodia fenomenal, para ser escutada sempre nos momentos mais inusitados.

“River” fecha o disco com a mesma elegância com que ele foi aberto. Obra-prima. Todos os elementos do universo progressivo do Gigante Gentil estão nessa composição. Essa é uma faixa excepcionalmente climática, com efeitos diversos, fragmentos de cello e violino, além das mudanças de andamento. O solo de guitarra de Gary Green é muito bem trabalhado, com um timbre imbatível. A banda dessa obra de arte é:

- Gary Green / guitarras, percussão - Kerry Minnear / teclados, vibrafone, percussão, cello, Moog, vocais - Derek Shulman / vocais, alto saxofone - Philip Shulman / saxofone, trompete, mellofone, vocais - Raymond Shulman / baixo, violino, guitarrra, percussão , vocais- John Weathers / bateria, percussão, xilofone

3 comentários:

Rodolpho disse...

Pena que se trata do último disco com Phil, numa tentativa afoita minha, poderia dizer que ele era uma espécie de superestrutura marxista da banda! Os demônios da recusa! Perdoe a loucura Marcos :D

Mas se eu vivo sonhando com o Milton Nascimento cantando com eles o que posso falar?! Sentimento puro!! Estágio realmenete de desentidmento.

Olha o carinha da Poeira Zine poderia te ler e refazer a matéria dele, numa boa! Não passa de datas e fatos, o pior, sem as devidas fontes, um horror! Mas quando não se tem outra coisa pra ler...

Creio que no meu começo de curso li algo sobre Rabelais, os historiadores dos Annales têm estudos certamente... vasculharei!

Pena não ter nenhuma beleza do gigante original em casa, ainda!

Engraçado é que ontem estava falando com uma amiga, no caso, ex-aluna sua, mais coincidência, sobre o gigante e fiquei de mandar a matéria da Poeira pra ela junto de alguns planfertes, até que é um bom apanhado, mas acho que todo historiador reclama, no contrário, lugar errado :D

Abraços Marcos...

Rodolpho disse...

Poxa Marcos...

Vou ter que passar o resto da noite lendo e relendo isso aqui mermão!
Passaste uma idéia de preocupação da banda com a arte, do trabalho, atingindo o sagrado!
Coisa assim só tinha visto e sentido com o Demetrio Stratos, vocalista italiano, ex-integrante da banda Area, cara já conhecia a banda, já era encantado, mas tive a sorte infinita de cair nas minhas mãos um livro independentíssimo feito por uma brasileira sobre ele, uma dissertação em Arte na USP, quando li sobre a vida do cara mudou completamente minha percepção sobre a música dele, e onde ele se metia para alcançar o que queria... o resultado não poderia ser outro, se a realidade é única, música e vida não podem ter fronteiras, isso anda tirando meu sono... e quero um dia escrever sobre ele :D

Marcos Vinícius Leonel disse...

Pois é, Cara, existe uma entrevista do Derek, para a Rolling Stones, em que ele explica a saída do irmão, que na realidade foi demitido. Segundo Derek, o Phil estava contestando em demasia, questionando a tendência pop e o afastamento da música de vanguarda. Além disso ele queria mudar os arranjos todos e no palco ficava insatisfeito com o resultado.

Cara a ligação deles com Rabelais é bem forte e se dá através de um estudo feito pelo filósofo russo Mikail Baktin, que feza um estudo aprofundado da abordagem popular de Rabelais e da forma dele criticar a sociedade através da catarse do riso e da escatologia. Esse aspecto irônico e catártico, o Gentle Giant usa muito, inclusive a partir do próprio nome.

Essa banda é fenomenal.

Ainda sobre as ligações literárias e filosóficas da banda, eles têm um disco conceitual, "In a glass house", com uma ligação total com as teses de R. D. Laing, um psicólogo dissidente da corrente freudiana, ligado às teses da sincronicidade de C. G. Yung.

Deles, o mais ligado a essas tendências artísticas radicais era o Phil, é tanto que saiu por discordar dos rumos adotados pela banda, já pressionada pela gravadora sobre as vendagens.

abraços