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domingo, 17 de agosto de 2008





Achados e perdidos

Corações Futuristas
Egberto Gismonti Senhor do Tempo

Em meados dos anos 70 e primeira metade dos anos 80 o mercado fonográfico foi surpreendido com a evolução de um segmento instrumental logo rotulado de jazz fusion. Eram as trilhas abertas por Miles Davis e seus seguidores. Muitos conseguiram respeito e vendagens significantes. Outros não passavam de armações descaradas rumo ao musak, a trilha ideal para esperas de telefones e elevadores. É durante esse período que Egberto Gismonti constrói a sua imensa reputação internacional.

Vários músicos brasileiros estavam estabelecidos na gringolândia e participavam ativamente desse movimento, tais como Eumir Deodato, Raul de Sousa, Airto Moreira, Flora Purim e Sérgio Mendes, gravando com grandes nomes ou lançando seus próprios discos. Alguns moravam aqui, mas tinham contratos internacionais, tais como Hermeto Pascoal, Azymuth, João Donato, Baden Powell e Egberto Gismonti. A cena era propícia para fusões de todos os tipos: jazz, rock, samba, soul, funk, bossa, blues, tango, rumba etc.

A efervescência do mercado musical como um todo, proporcionou a sedimentação da globalização musical. Não eram apenas discos lançados internacionalmente, eram turnês mundiais, grandes festivais e fãs espalhados por todo mundo. Era a quebra das fronteiras, dos idiomas, das culturas, dos guetos musicais. Artistas do mundo todo comungavam o mesmo desejo de comunicação instrumental. Inúmeros discos descomunais foram lançados. Um deles é exatamente “Corações Futuristas”, de Egberto Gismonti, lançado em 1976, o nono em sua discografia.

Nesse disco o multiinstrumentista brasileiro faz uma fusão de jazz, rock, progressivo, clássico e música brasileira de altíssimo nível. Sem dúvida nenhuma, junto ao álbum “Slaves Mass”, de Hermeto Pascoal, “Corações Futuristas” é o lançamento mais emblemático do período. Com uma sonoridade acústico-eletrônica e uma orquestração fenomenais, o bolachão projeta Egberto Gismonti para a eternidade e o estrelato universal. Egberto é virtuoso sem ser cansativo e sem ofuscar os arranjos e a banda.

Dança das Cabeças, a primeira faixa, traz Egberto usando e abusando dos sintetizadores arp odissey II, obehaim, moogs e derivados, explorando timbres e extensões interplanetárias. Além dos teclados ele utiliza um phase em seu violão de oito cordas, criando ambiências estratosféricas. As músicas seguintes: “Café”, “Carmo”, e “Conforme a Altura do Sol” formam uma espécie de suíte de cerca de vinte minutos de pura viagem astral, com harmonias intercaladas e passagens climáticas seminais, verdadeiramente progressivas. Um marco. A experiência auditiva dessas músicas é sem explicação. É extasiante.

O contraste com a parafernália eletrônica fica por conta da cozinha, completamente acústica, com a fábrica de ritmos de Roberto Silva, um dos maiores bateristas do mundo, e o baixo acústico de Luís Alves,que vai além da metafísica. Para completar essa usina sonora o sax soprano de Nivaldo Ornellas, com seus timbres experimentais, transfere tudo para a música de vanguarda. Mauro Senise e Danilo Caymmi tocam flautas, complementando essa aula de música. Em algumas passagens Egberto faz um arranjo para as vocalizações de Dulce Nunes, na música “Carmo” e Dulce Nunes e Joyce em “Baião do Acordar”, transformando tudo em magia, em encantamento.

Depois de misturar jazz, progressivo, baião, bossa e mpb, o disco mergulha nas águas misteriosas das cordas, especialmente em “Polichinelo” e “Baião do Acordar”, com Egberto Gismonti revelando todo o seu lado erudito, sem pedantismo. São texturas delicadas, com cores nítidas de Villa-Lobos e impressionismo etéreo. As orquestrações arranjadas por Gismonti são refinadas e traduzem a contemporaneidade de um músico e compositor em estado de graça, muito bem definida pelo título do disco. “Corações Futuristas” é um disco obrigatório.

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