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sábado, 27 de dezembro de 2008


Vitrine

O Coração do Homem Bomba Vol. 1– Zeca Baleiro
A volta dos que nunca se foram

Zeca Baleiro volta em dose dupla, depois de três anos sem lançar um cd de inéditas. Depois do morno Baladas do Asfalto e Outros Blues, os dois volumes intitulados como O Coração do Homem Bomba, fincam definitivamente as raízes do Baleiro entre os autores referenciais da musica popular brasileira contemporânea, que atravessa uma das suas piores crises autorais depois da ditadura militar.

Muita baboseira tem sido escrita para desmistificar a sofisticação da criação musical, na tentativa de legitimar uma pretensa simplicidade estética das novas composições de Zeca Baleiro nesse projeto. Pura perca de tempo, pura futilidade. Ele não se reinventa, ele não se recicla, nem se debruça sobre o descompromisso, nem se volta para o brega-chic, nem nega as tendências radicais de vanguarda, nem a quilo, nem a metro e nem a litro.

Zeca continua sendo apenas o mesmo, aparando as afetações e depurando suas influências, ele apenas está construindo sua carreira com coerência e honestidade. Seu sotaque maranhense permanece nítido, seus decibéis tropicalistas continuam audíveis e sua universalidade não precisa mais de legenda, bem como o seu humor mantém o charme especial de sua obra.

Além de toda uma musicalidade permanente, que não perde o prumo e se expande facilmente a cada novo trabalho, o Baleiro tem se revelado um pesquisador das sonoridades coloquiais de nossa linguagem popular. Além disso, a banca de bombons de Zeca ainda oferece drops de versões especiais, com edições limitadas, só para colecionadores. Isso tudo em um só caldeirão não pode ser simples nunca. Pode até parecer simples, mas não é. Existe uma diferença sutil, mas fundamental, entre o imediato e o imediatismo.

Rock, ska, samba, samba-rock, forró, balada, e revisitações diversas fazem parte do cardápio do O Coração do Homem Bomba, e tudo misturado, com muito humor e certa dose de cinismo indispensável. A produção enxuta de Zeca Baleiro e Evaldo Luna deixa tudo em seu devido lugar, sem exageros e sem economias retrós. A climática “Geraldo Vandré”, faixa que encerra o Vol. 1, resume em grande estilo a assinatura dessa produção.

O disco abre com uma vinheta que anuncia o que se pretende: trabalhar a dualidade do cotidiano imperativo. Tratado aqui na sonoridade dos instrumentos, na sonoridade das palavras, no significado das letras e nas versões das músicas de outros autores. O coração do homem bomba é uma mistura de sentimento e pragmatismo. Tum Tum e bum é a própria distensão dual entre o imaterial e o material, entre o bem e o mal, entre a vida e a morte.

Essa dualidade está presente em todas as músicas e vinhetas, em desdobramentos plurais e singulares. Fruto de uma visão poética desnudada da pretensão da tese, munida da observação e da linguagem trabalhada. A sonoridade e a significação de má, na faixa “Você é má”, é o retrato fiel dessa busca lúdica do poeta, que mergulha no maniqueísmo existencial dos anos dois mil, com um humor corrosivo o tanto que simpático, traduzido em neologismos, trocadilhos e assonâncias inesperadas.

Os destaques são especiais dentre as músicas especiais de um repertório que acerta o alvo por completo, sem terrorismos e horrores. “Você não liga pra mim” é incrivelmente irresistível, um ska sem fronteiras. “Alma não tem cor” é um clássico do Karnak que virou um clássico do Baleiro, imperdível e pronto para repetições exaustivas.

“Aquela prainha” é uma abordagem irônica da ocupação interventora dos gringos no litoral nordestino. “Você é má” é sem explicação, uma obra prima bissexta. “Bola dividida” é um clássico dos anos 70, de Luiz Ayrão, que recebe a etiqueta da grife Baleiro de versões. “Toca Raul” é uma crônica viva de turnês, deliciosamente mitológica. “Geraldo Vandré” é aquela música que faz com que você compre um disco.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008


Vitrine

Labiata
A permanência de Lenine


Todo o espaço conquistado pelo compositor pernambucano, Lenine, está confirmado com o lançamento do seu novo disco, “Labiata”. Está confirmado com estilo, com elegância, com a apologia certeira de que o menos é muito mais e de que nada vale o virtuosismo se a criatividade e a originalidade não são suas guias. “Labiata” não é coisa que se finda, é coisa que se ilumina lentamente, ao sabor do devaneio, com ou sem trocadilhos.

Diz Lenine que o nome é de uma orquídea, em entrevista para Anderson Dezan, do site de notícias Ultimosegundo, ele afirma: “Três coisas me impressionam neste tipo de orquídea. Em primeiro lugar, a beleza da flor, sua exuberância. Depois, a diversidade da ocorrência dela. São mais de 40 mil espécies espalhadas pelo mundo e é possível encontrá-la no meio do deserto da Austrália, como no Tibete. Em terceiro lugar, a resistência. Ela tem essa capacidade de ser uma flor delicada e robusta. Esses três significantes permeiam o que é a música popular brasileira: a beleza, a diversidade e a resistência”.

“Labiata” é o oitavo disco de Lenine e o primeiro de estúdio, depois de dois discos ao vivo: MTV acústico e InCité; e de uma trilha para balé Breu, encomendada pelo Grupo Corpo. Duas peculiaridades acompanham esse novo trabalho, o lançamento simultâneo em vinil e a composição integral das músicas feita em estúdio, em pleno período de gravação. Além disso, vale ressaltar a produção requintadamente equilibrada de Jr. Tolstoi e a manutenção da banda base do último disco, com o caririense Pantico, na bateria e Jr. Tolstoi, nas guitarras, efeitos e intervenções; mais o baixo de Guila.

O disco tem as participações super especiais do Quinteto da Paraíba; de Pedro Luís e A Parede; Arnaldo Antunes, em uma expressão sonora e parcerias; Carlos Muñez; e China. Além disso, os três filhos de Lenine fazem vocais na faixa que fecha o disco, “Continuação”, uma das duas músicas de autoria total de Lenine, a outra música é “Martelo Bigorna”, que abre o disco. As outras composições, todas inéditas, Lenine divide com velhos parceiros, como Lula Queiroga, Bráulio Tavares, Dudu Falcão e Paulo César Pinheiro. Dentre essas parcerias existe uma póstuma, com Chico Science, “Samba e Leveza”, dedicada a Goretti, irmã de Chico, que viabilizou a parceria.

O estilo é o mesmo, harmonias dissonantes e levada sincopada, com melodias simples em cima de letras espertas, distantes dos imediatismos de mercado que empesteiam a crise institucionalizada da música popular brasileira. Os traços rockeiros de Jr. Tolstoi permanecem em sua pegada visceral e extremamente contemporânea. Aliás, Jr. Tolstoi é o sideman que qualquer cantor ativo e renovado precisa. Ele é senhor de sua parafernália de efeitos e sabe como poucos guitarristas da nova geração, fazer uma cama de texturas para que a base flua, com peso e delicadeza ao mesmo tempo. O trabalho desse guitarrista esperto, com pedal whammi, na faixa “O céu é muito”, parceria com Arnaldo Antunes, é eficiente, técnico e criativo.

Em seu trabalho de produção, Tolstoi deu a medida exata ao violão de Lenine e fez com que o cantor pernambucano também tocasse guitarra, com timbres limpos descolados. Mesmo nas faixas mais acústicas, que tiram o sono de qualquer produtor, Tolstoi manda bem nas captações e mixagens. As levadas funk das composições de Lenine, também foram bem tratadas, com a cozinha recebendo o devido destaque. Ao longo do disco, Tolstoi utiliza-se de filtros diversos, delays, compressores e reverbs bem dosados, sem a crueza patética de alguns discos indies e sem a plastificação de magazine de alguns discos atuais da MPB.

Os destaque ficam por conta das faixas “Martelo Bigorna”; “A Mancha”, com excelente letra de Lula Queiroga; “O céu é muito”, “É fogo”, tremenda levada; “Ciranda praieira”, extremamente climática, com intervenções, ruídos e efeitos de whammi na guitarra de Jr. Tolstoi; e a excelente “Excesso exceto” , o casamento perfeito entre o peso e a leveza, uma das poucas letras em que Arnaldo Antunes se livra do marasmo eterno do seu eterno nominalismo. Esse é um disco raro em meio a tanta porcaria lançada no mercado, visando as vendas de fim de ano.

sábado, 13 de dezembro de 2008



Achados e Perdidos
Sambrasa Trio
Em som maior

Esse é um disco único por vários motivos. É o único disco do trio. É o primeiro registro sonoro de Hermeto Pascoal como band lead. Esse disco é único por que tem um registro todo especial, que é uma música de Hermeto Pascoal e outra de José Neto, seu irmão. Além disso, esse é o disco em que é possível perceber o ponto exato em que Hermeto Pascoal começa a abrir as asas para vôos mais altos, dentro de um estilo próprio.

Sambrasa Trio faz parte da chamada onda jazz samba, uma fusão sonora dos fins da década de 50 e inícios da década de 60 do século XX. Tendo a bossa nova como referência e o predomínio do piano, com harmonias e improvisos jazzísticos sobre uma base rítmica brasileira, o jazz samba sofria influências diretas do be bop, do hard bop, do cool jazz e alguns lampejos da música modal. Além, é claro, do chorinho e do samba.

Dentro de um panorama contemporâneo o samba jazz estava além do tradicional, que eram aqueles arranjos orquestrais ainda dentro dos parâmetros estéticos do swing, pois já apresentava encadeamentos harmônicos dissonantes e linhas de improvisação mais complexas. No entanto, o samba jazz estava aquém das experiências de vanguardas da música concreta, do minimalismo, do abstracionismo e do free jazz, que exploravam a atonalidade, os fragmentos harmônicos, os ruídos e as intervenções diversas.

O disco “Em Som Maior” foi gravado em 1965, mas ainda sofria o clima de efervescência cultural brasileira da era JK, com as projeções do cinema novo, o respaldo literário de Guimarães Rosa e a quebra de fronteiras da bossa nova. São os últimos resquícios desse clima de festa e realização, pois já era o governo de Castelo Branco e os horrores da ditadura militar já maquinavam os seus aniquilamentos materiais e imateriais, logo em breve a repressão criminosa estaria nas ruas, nos corações e nas cabeças.

Como Hermeto Pascoal, Airton Moreira e Humberto Cleyber, existiam inúmeros músicos brasileiros de altíssimo nível que tinham as casas noturnas de São Paulo e Rio de Janeiro como o espaço sagrado para o desenvolvimento da música instrumental brasileira. Artistas como Eumir Deodato, César Camargo Mariano, Amilton Godoy, Sérgio Mendes, Paulinho da Costa, Raul de Sousa, João Donato, Heraldo do Monte, Théo de Barros, e tantos outros, sobreviviam de pequenos cachês das casas noturnas, nutrindo a esperança de um lugar ao sol, ou à lua, o que era mais coerente. Quase todos foram embora do país e retornaram com nome internacional.

A fórmula do trio já era bem experimentada, entre os mais famosos estão o Zimbo Trio e o Tamba Trio. Airton Moreira e Humberto Cleyber já haviam formado o Sambalanço Trio, com César Camargo Mariano ao piano. Mas foi com essa formação, com Hermeto, que o som ficou mais diferente do que o usual nessas formações. Além de piano, Hermeto tocou flauta, já com uma embocadura fora dos padrões brasileiros. Cleyber, além de baixo acústico, tocou também harmônica, fazendo dueto com Hermeto na música “Lamento Sertanejo”. Airton Moreira tocou bateria com uma pegada bem distante do normal dessas formações, ele tocou com força e peso, usando aros, ferragens e o corpo da bateria para tirar sons.

O destaque do disco é a pegada do trio, nada conservadora, nem nos improvisos e nem no volume. A música mais parecida com a estética típica dessas formações é “Duas Contas”, com arranjo bem cool jazz. Fora isso, o que se escuta é uma pegada visceral, malandra, noturna, com um peso bem próximo das incursões fusion do jazz de vanguarda. A concepção harmônica de Hermeto Pascoal já está aqui, de forma embrionária. As melhores músicas são as de autoria dos integrantes do trio. Esse é um disco que não envelheceu, tronou-se uma referência obrigatória.

Victor Jara

Quantas paixões as asas negras da morte simularam transportar. Mas não era nada, não era paixão, não eram revoluções sobre o solo da América Latina. Apenas o sangue derramado, o ar sufocado, o corpo destroçado. Não eram sonhos e desejos, era a violenta extração dos campos rumando em estradas cangaceiras indo às margens das valas negras que escorrem a miséria contínua da vida urbana.

Victor Jara era filho de camponeses chilenos. O pai no eito da labuta sem progresso e a mãe uma artista que elevava as almas em velórios. Seu pai Manuel bebia cada vez mais e sua mãe Amanda no conflito para criar sete filhos. Amanda vai com os filhos para a capital. Victor começa estudar no Liceu Católico e aí o mais fantástico das asas negras da América Latina.

Victor Jara, por incrível que parece se politiza no movimento Ação Católica, seguindo as diretrizes de Pio XI que pensava ampliar a influência católica. Victor era um artista sensível ao cruento mundo dos latifundiários chilenos. Excelente compositor e cantor, ator, diretor de teatro. Morre Amanda de um infarto agudo do miocárdio e Victor se enclausura no Seminario Redentorista San Bernardo. Segue a disciplina, abandona a vida monástica, mas serve ao exército chileno.

Eis um homem de seu país, de sua pátria de suas crenças e de suas raízes. E, no entanto, pela sua sensibilidade social, pela sua música de protesto ao estabelecimento do que se julga inamovível. Victor é uma personagem mundial. O mais importante de todas as coisas para a juventude.

A qualidade não é uma forma. A estética não é uma moda. A qualidade da arte é o que ela diz das grandes questões do surgir, do permanecer, do ir-se e do voltar-se da humanidade. Diz deste movimento que tem conteúdo e o conteúdo, não se enganem, é a voz do povo, o folclore, os hábitos, suas construções entranhadas na trajetória mais ampla do movimento da história.
E foi nas raízes do povo chileno e não no Americano ou Europeu, nem na grande indústria cultural que a juventude chilena fez de sua música uma das maiores expressões dos anos 60 e 70. Violeta Parra, Victor Jara, Los Jaivas e tendo o fluir telúrico do poeta maior: Pablo Neruda.

Por isso é que a morte não pode retornar-se camuflada, com seus dentes envenenados, sob a forma de um preconceito doentio, de um pedantismo cultural, de um ódio contra os efeitos da pobreza como se nela estivesse a causa. Victor Jara perdeu o emprego na universidade, foi perseguido, e o foi por este mesmo ódio contra as formas emanentes e remanescentes de nossa alma: os Aimarás da Bolívia, os Quéchuas do Peru, do canto Mapuche. O ódio à demarcação das reservas indígenas brasileiras.

Não meu coração. A resistência não se encontra nestes fedegosos na alma, que habitam os bares das “calles mojadas”, nalguma Aldeota, uma esquina do Leblon com Ipanema. As cascas de uma alma vazia. Falam inglês, se assustam com a crise, pois não podem se usufruir do “sale” e “off price” das ruas de Nova Iorque. Numa recepção vip do show de Madona. Era Victor, o cantor se engajou na campanha de Salvador Allende. No dia do golpe militar, Victor Jara seguiu para a Universidade. Enquanto o palácio de La Moneda era bombardeado, os estudantes resistiam entre os prédios das faculdades. Todos foram aprisionados e levado para o Estádio Nacional.

Victor Jara, foi torturado por quatro dias. Um oficial que assomou o ódio de seu fascismo pediu a primazia da tortura ao artista e gritou: canta agora seu filho da puta! Ele cantou, no limites de sua força, o hino da Unidade Popular e em seguida foi morto. Seu corpo foi achado com ajuda de um jovem do partido comunista entre tantos outros no necrotério de Santiago.

Por José do Vale Pinheiro

Discografia

Discos de estúdio

1967: Víctor Jara

1967: Víctor Jara

1968: Canciones Folclóricas de América

1969: Pongo en Tus Manos Abiertas

1970: Canto Libre

1971: El Derecho de Vivir en Paz

1972: La Población

1973: Canto por Travesura

Discos ao vivo

1978: El Recital

1996: Víctor Jara en México

1996: Víctor Jara Habla y Canta

Edições póstumas

1974: Víctor Jara / Manifiesto

1975: Víctor Jara. Presente

1975: Víctor Jara. últimas Canciones

1979: Víctor Jara

1984: An Unfinished Song

1992: Todo Víctor Jara

1997: Víctor Jara Presente. colección “Haciendo Historia”

2001: Víctor Jara

2001: Pongo en tus manos abiertas

2001: El derecho de vivir en paz

2001: Víctor Jara habla y canta

2001: La Población

2001: Canto por travesura

2001: Manifiesto

2001: Antología musical

2001: 1959-1969

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008


Madonna no Brasil
A Volta do Simulacro

A cultura pop é uma imensa rede de esgotos que retroalimenta, através da reificação do inútil e do efêmero, o panteão das imbecilidades do mundo contemporâneo. Um dos maiores ícones dessa putrefação ence-fálica a céu aberto é Madonna, que volta ao Brasil depois de quinze anos, com a bunda sentada em uma lista patética de exigências e a vagina aberta por sobre um circo tecnológico capaz de fornicar a idiotice de sua platéia por cerca de duas horas e parir milhões de dólares em poucos segundos.

Alguns a chamam de diva. Outros dizem que ela é a musa do pop. Mas de fato o que ela é na realidade é uma cantora de quinta categoria com embalagem midiática típica das propagandas de quinquilharias eletrônicas japonesas, sempre prontas e predestinadas a serem falsificadas na China, sem dúvidas. Mas essa parte ela segue como um sacramento, com postura de um fanático, desses que se encontra em qualquer templo. Madonna se falsifica a cada disco lançado, a cada show estrelado. Ela é o simulacro do simulacro, em plena propriedade do pastiche, desde seu primeiro ganido entendido como canto.

Mas ela não está só, a sua espécie se reproduz assustadoramente. Com ingressos que vão de 180 a 600 reais, fora da indústria dos cambistas, existem pessoas acampadas para comprá-los. O que é natural em um país em que Caetano Veloso, um dos monumentos culturais brasileiros, após ter excursionado ao lado de Roberto Carlos Brega, afirmar categoricamente, em um ciclo de palestras sobre a cultura brasileira promovida pela Folha de São Paulo, que a banda Calypso revolucionou o pop brasileiro.

De fato, esse é o momento do monumento, tão sólido quanto dolente, tão duradouro quanto uma pedra de crack. Essa é a retroalimentação da barbárie cultural high-tech. Monumentos copulam monumentos e procriam monumentozinhos tarados, pervertidos, esquizofrênicos, com transtornos de personalidades, deslumbrados com o número de acessos e comentários ou preocupados com a pirataria cultural. Em sua lista de exigências, Madonna dá o ar inequívoco de sua religiosidade contemporânea ao colocar em um pedestal existencial o assento do aparelho sanitário. Esse é, sem dúvidas, o maior monumento contemporâneo.

Ela exige que todos os assentos sejam novos e avisa que, depois de usados, eles serão levados por sua equipe. Isso é o que se chama de bagagem cultural do mundo pop, a cagada monumental. O assento do vaso sanitário deixa vestígios da nossa reles condição humana. Mitografando então o assento, o cu passa a ser, apenas, uma possibilidade do plausível, o que transforma de imediato a bosta em objeto de tese das linhagens científicas, religiosas e sentimentais, conservadoras ou progressistas. Eis Madonna em seu sagrado quarto de despejo, elaborando artísticas conjecturas de esterco.

Até nisso Madonna é perfeita. Ao mesmo tempo em que ela não quer deixar vestígios de sua verdadeira obra, levando consigo os assentos sanitários e derivados, ela exige que em sua passagem pelo Brasil, apenas 13 pessoas podem dirigir palavras a ela, ou seja, só ela tem o direito de falar suas merdas monumentais em terras brasileiras, com direito a deixar vestígios nas paredes e no ventilador. O público adora, pois isso é o que o retroalimenta, uma vez que não existe continência maior em consumir simulacros do que venerar o próprio excremento.

A produção anunciou a mais perfeita parafernália tecnológica, com luz e palco cinematográficos. Um luxo! Um arraso de espetáculo! Tudo perfeito para ser consumido e esquecido na primeira ida ao trono maior. Enquanto isso a água de Madonna vem de Israel e as carnes de ruminantes que irão produzir gases pop em suas entranhas virão de New York e Londres. Os carros que irão transportar a velha rainha do brega, vêm da Alemanha, são todos da montadora Audi. Já a demência que irá pular e gritar nos shows é toda daqui mesmo. Literalmente brasileira, monumentalmente cagada e cuspida.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008




Achados e Perdidos

Araçá Azul
O radicalismo tropicalista de Caetano Veloso

Quando Caetano Veloso e Gilberto Gil voltaram do exílio eles encontraram um recorte histórico de desilusões políticas e de aniquilamento da liberdade de expressão. Além disso eles encontraram uma música de resistência, engajada politicamente, que detinha verdadeiramente o prestígio da crítica, em contra-face a uma facção vendida e alienada do mercado. Eles tentaram se colocar no meio termo do engajamento e distante ao máximo da inércia criativa e da estagnação opinativa. É desse tempo o disco Araçá Azul. Corriam os anos 70, mais precisamente 1973.

Muito se tem falado desse disco. Muitos confetes foram jogados, como também muita escatologia oportunista também. Caetano Veloso não é lá de fazer muitos amigos. Muito se deve ao seu posicionamento de comentarista, nem sempre certeiro, sempre sincero e algumas vezes cretino ao extremo. Caetano fala o que quer e escuta o que não quer. De fato, Caetano é bem melhor compondo do que teorizando. Mas esse não é um disco que escape ao polêmico. E por isso a inconstância de teses. Historicamente foi o disco mais devolvido do seu tempo. Historicamente foi o disco mais cultuado pelos descolados e desconsolados do seu tempo. Como atesta o atestado da capa: um disco para entendidos, inclusive na sua concepção gay.

Quando da volta, sem o exílio nas costas, mas com as marcas do tempo na fisionomia, Caetano precisava reconhecer e ser reconhecido, ao que parece pelo seu lançamento. Precisava redemarcar o seu re-torno. E ele o fez em grande estilo, respaldado pelo respeito e prestígio dos concretistas do grupo Noigrandes, mais especificamente na pessoa de Augusto de Campos, a quem dedica e a quem remete como fonte inspiradora a música “De Palavra em Palavra”.

Sem ter necessariamente uma incidência completa e unilateral do concretismo, mas sim um acoplamento de interesses e visões artísticas, Caetano juntou o útil ao necessário, justamente para quem precisava ser re-legitimado. E se fez então um dos maiores impérios opinativos da década de 70 e 80. De um lado os autores do concretismo, que já ostentavam um poder imenso de determinar o que era bom e o que era descartável nas artes tupiniquins, do outro lado chegou então Caetano e a sua trupe multicolorida, inversa, invertida, ou não, quem sabe? pode até ser...

Araçá Azul é feito de uma matéria concreta, tropicalista, experimental, mas decididamente nada inovadora, pois afinal aqueles elementos ali já tinham sido experimentados dentro ou fora do país, e ainda dentro ou fora do próprio tropicalismo. Mas não é do ineditismo que se sustenta essa obra. É mais ainda pela sua ousadia e liberdade criativa do que propriamente pela bandeira de uma estética qualquer. E nisso tem de muita coragem, partindo de quem precisava do mercado naquele exato momento, daí a sua indiscutível durabilidade.

Araçá Azul tem raízes brasileiras e estrangeiras, como propagara o neo-antropofagismo tropicalista. Tem também colagens musicais, intertextualidades e citações diversas. A descontinuidade e a fragmentação não são apenas olhos oculares do tempo, são necessidades expressas. Como também são necessidades de engajamento indireto e predileto pela voz e vozes latinas, nesse disco na figura de Dominguez e seu bolerão “Tu me acostumbrastes”, como a que dizer estão abertas as veias da América Latina.

Então se juntaram aos poucos e aos pedaços o samba de roda de Edith Oliveira; o experimentalismo de Sousândrade, via concretismo de Augusto; mais a pegada rockeira e visceral de Lanny Gordin e seu circo psicodélico; a bossa de João Gilberto, uma referência sempre; a desconstrução das colagens sonoras, através de Hermeto e Walter Smetack; a providência eclética e de vanguarda do erudito Rogério Duprat; e a poesia fina de Caetano Veloso em Araçá Azul: “Araçá Azul é sonho-segredo / Não é segredo / Araçá Azul fica sendo / o nome mais belo do medo // Com fé em Deus / eu não vou morrer tão cedo // Araçá Azul é brinquedo.

Algumas peculiaridades marcam esse disco eternamente: a capa, com Caetano só de tanga, se olhando em um espelho e que remete à outra capa (deliciosa, por sinal), do disco “Índia” de Gal Costa, do mesmo ano; ao tremendo rock, digo imperdível rock, “Eu quero essa mulher assim mesmo”, uma das versões (de autoria do sambista Monsueto Menezes, de quem Caetano já havia gravado “Mora na Filosofia”, no álbum “Transa”) mais viscerais e pesadas de Caetano Veloso, com um solo insano de Lanny Gordin, colocando a guitarra pelo avesso; e o lado assumidamente gay de Cae, o que não tem problema algum, muito menos solução, apenas é. Imensamente causador de reflexões.







Clássicos

The Stooges – 1969
A lisergia primal

Falar dos Stooges é falar do submundo, é procurar entender a contracultura, é perceber que a música não precisa necessariamente ser um fim, mas apenas um meio para expressar o sentimento da existência impura da contravenção, do aniquilamento imperdoável do tempo e do espaço.

Depois de tantos anos e tantos rótulos fornecidos pela merdologia crítica do mercado musical, fica fácil enquadrar a banda em uma estética qualquer, como proto-punk, por exemplo. Mas isso é porcaria, sem função nenhuma. Aliás, não ter função era uma das intenções da banda, que começou a subverter a ordem até na sua própria concepção estética: eles se achavam psicodélicos, antagônicos ao movimento de Los Angeles. Inicialmente eles se proclamaram The Psychedelic Stooges, algo parecido como Os panacas psicodélicos, em tradução livre.

Eles achavam que ser psicodélicos era construir seus próprios instrumentos, como Harry Partch, um obscuro e injustiçado compositor americano, que desenvolveu uma marginalizada estética baseada em escalas microtonais e atonais, fabricando seus próprios instrumentos para isso. É também de Harry Partch que vem boa parte da performance corporal de Iggy Pop no palco. Harry Partch fez uma junção de música, discurso e expressão corporal em várias de suas peças, entre elas a descomunal interpretação operística do poema “Sophocles’ Oedipus”, de Willians Butler Yeats.

Nos primórdios da banda a percussão era baseada em tonéis de metal vazios e outros apetrechos. Uma guitarra sem quase nenhuma técnica em volume estratosférico e um vocal desesperado, com Iggy Pop cantando suas apatias vestindo uma camisola de maternidade e empunhando uma tábua de lavar amplificada. Eles evoluíram, se é que se pode afirmar isso, para uma banda com formação comum e impressionaram um executivo da Electra, que havia viajado para Detroid com o intuito de contratar o MC5. O som não impressionou tanto, mas Iggy Pop cortando o próprio corpo com vidro e se lambuzando com pasta de amendoim no palco, enquanto berrava o seu tédio, sim.

Para registrar o primeiro disco, intitulado apenas “The Stooges”, a banda precisou completar o material, pois eles só tinham cinco músicas no repertório: 1969; No fun; I wanna be your dog; We will fall e Ann. A banda vivia de longas improvisações no palco. Boa parte delas está registrada em seus discos, com sessões históricas, repletas de álcool, drogas e experiências diversas. As músicas Real cool time; Not right e Litle doll foram compostas, então, em uma madrugada e tocadas pela primeira vez no estúdio. Uma boa parte de We will fall também foi acrescida no estúdio.

O disco teve a produção de ninguém mais do que John Cale, líder do Velvet Underground, que ainda tocou piano em I wanna be your dog e viola em We will fall. O som é cru, é visceral, é na cara, sem constrangimentos de nenhuma espécie. A maioria composta em três notas, suficientes para descabelar qualquer um que busque complexidade harmônica, como também suficientes para entusiasmar qualquer um que esteja cansado de hermetismos musicais e prolixidades discursivas.

1969 é sem nenhuma esperança. É uma espécie de shufle anarquista, abre o disco como um verdadeiro cartão de visitas de vendedor de aspirador de pó. A ironia fica por conta desse vendedor estar em um bairro pobre, sem grana e sem futuro. O wha da guitarra de Ron Asheton ficou marcado para sempre, esse é um dos hits mais Cult de todos os tempos. I wanna be your dog é um clássico, um hit natural, com uma seminal parede fuzzy de guitarra, além de uma percussão pernóstica, que lembra sons de natal. Iggy Pop não canta essa música, ele proclama. Imperdivelmente sujo, marginal, submundo.

We will fall é uma faixa bizarra e experimental. Tem o minimalismo apresentado muitas vezes nas músicas do Velvet. Depois de tanto tempo passado o clima soturno dessa faixa não envelheceu e é o que mais se aproxima de uma pegada psicodélica. No fun, a faixa seguinte, é deliciosamente marginal, um hino ao desperdício juvenil, retratando a falta de perspectiva americana. A bateria de Scott Asheton e o baixo de Deve Alexander recebem o auxílio de palmas, bem ao estilo roots. Essa faixa tem a autenticidade cretina que faltou aos Rolling Stones e a ironia satírica marginal que nunca esteve presente nos Beatles. Também não sei se era preciso.

Real Cool time, Ann, Not right e Litle doll fecham o disco com o estilo legítimo dos Stooges: com ironia e improvisações, com direito à lisergia em Ann e ao peso cru nas duas últimas músicas. Esse é um disco histórico, não por pertencer a um passado rico artisticamente, mas por ter feito história, na concepção maior do termo. A grande contribuição desse disco é justamente fundar a não estética, o não virtuosismo. Sobre ele pesa a atitude de uma geração que se viu ludibriada pelos ilusionistas do way of life americano. Ouvir esse disco depois de tanto tempo é muito gratificante, principalmente para aqueles que entendem o rock como um meio e não como um fim.