Total de visualizações de página

segunda-feira, 24 de novembro de 2008




Achados e Perdidos

Araçá Azul
O radicalismo tropicalista de Caetano Veloso

Quando Caetano Veloso e Gilberto Gil voltaram do exílio eles encontraram um recorte histórico de desilusões políticas e de aniquilamento da liberdade de expressão. Além disso eles encontraram uma música de resistência, engajada politicamente, que detinha verdadeiramente o prestígio da crítica, em contra-face a uma facção vendida e alienada do mercado. Eles tentaram se colocar no meio termo do engajamento e distante ao máximo da inércia criativa e da estagnação opinativa. É desse tempo o disco Araçá Azul. Corriam os anos 70, mais precisamente 1973.

Muito se tem falado desse disco. Muitos confetes foram jogados, como também muita escatologia oportunista também. Caetano Veloso não é lá de fazer muitos amigos. Muito se deve ao seu posicionamento de comentarista, nem sempre certeiro, sempre sincero e algumas vezes cretino ao extremo. Caetano fala o que quer e escuta o que não quer. De fato, Caetano é bem melhor compondo do que teorizando. Mas esse não é um disco que escape ao polêmico. E por isso a inconstância de teses. Historicamente foi o disco mais devolvido do seu tempo. Historicamente foi o disco mais cultuado pelos descolados e desconsolados do seu tempo. Como atesta o atestado da capa: um disco para entendidos, inclusive na sua concepção gay.

Quando da volta, sem o exílio nas costas, mas com as marcas do tempo na fisionomia, Caetano precisava reconhecer e ser reconhecido, ao que parece pelo seu lançamento. Precisava redemarcar o seu re-torno. E ele o fez em grande estilo, respaldado pelo respeito e prestígio dos concretistas do grupo Noigrandes, mais especificamente na pessoa de Augusto de Campos, a quem dedica e a quem remete como fonte inspiradora a música “De Palavra em Palavra”.

Sem ter necessariamente uma incidência completa e unilateral do concretismo, mas sim um acoplamento de interesses e visões artísticas, Caetano juntou o útil ao necessário, justamente para quem precisava ser re-legitimado. E se fez então um dos maiores impérios opinativos da década de 70 e 80. De um lado os autores do concretismo, que já ostentavam um poder imenso de determinar o que era bom e o que era descartável nas artes tupiniquins, do outro lado chegou então Caetano e a sua trupe multicolorida, inversa, invertida, ou não, quem sabe? pode até ser...

Araçá Azul é feito de uma matéria concreta, tropicalista, experimental, mas decididamente nada inovadora, pois afinal aqueles elementos ali já tinham sido experimentados dentro ou fora do país, e ainda dentro ou fora do próprio tropicalismo. Mas não é do ineditismo que se sustenta essa obra. É mais ainda pela sua ousadia e liberdade criativa do que propriamente pela bandeira de uma estética qualquer. E nisso tem de muita coragem, partindo de quem precisava do mercado naquele exato momento, daí a sua indiscutível durabilidade.

Araçá Azul tem raízes brasileiras e estrangeiras, como propagara o neo-antropofagismo tropicalista. Tem também colagens musicais, intertextualidades e citações diversas. A descontinuidade e a fragmentação não são apenas olhos oculares do tempo, são necessidades expressas. Como também são necessidades de engajamento indireto e predileto pela voz e vozes latinas, nesse disco na figura de Dominguez e seu bolerão “Tu me acostumbrastes”, como a que dizer estão abertas as veias da América Latina.

Então se juntaram aos poucos e aos pedaços o samba de roda de Edith Oliveira; o experimentalismo de Sousândrade, via concretismo de Augusto; mais a pegada rockeira e visceral de Lanny Gordin e seu circo psicodélico; a bossa de João Gilberto, uma referência sempre; a desconstrução das colagens sonoras, através de Hermeto e Walter Smetack; a providência eclética e de vanguarda do erudito Rogério Duprat; e a poesia fina de Caetano Veloso em Araçá Azul: “Araçá Azul é sonho-segredo / Não é segredo / Araçá Azul fica sendo / o nome mais belo do medo // Com fé em Deus / eu não vou morrer tão cedo // Araçá Azul é brinquedo.

Algumas peculiaridades marcam esse disco eternamente: a capa, com Caetano só de tanga, se olhando em um espelho e que remete à outra capa (deliciosa, por sinal), do disco “Índia” de Gal Costa, do mesmo ano; ao tremendo rock, digo imperdível rock, “Eu quero essa mulher assim mesmo”, uma das versões (de autoria do sambista Monsueto Menezes, de quem Caetano já havia gravado “Mora na Filosofia”, no álbum “Transa”) mais viscerais e pesadas de Caetano Veloso, com um solo insano de Lanny Gordin, colocando a guitarra pelo avesso; e o lado assumidamente gay de Cae, o que não tem problema algum, muito menos solução, apenas é. Imensamente causador de reflexões.







Clássicos

The Stooges – 1969
A lisergia primal

Falar dos Stooges é falar do submundo, é procurar entender a contracultura, é perceber que a música não precisa necessariamente ser um fim, mas apenas um meio para expressar o sentimento da existência impura da contravenção, do aniquilamento imperdoável do tempo e do espaço.

Depois de tantos anos e tantos rótulos fornecidos pela merdologia crítica do mercado musical, fica fácil enquadrar a banda em uma estética qualquer, como proto-punk, por exemplo. Mas isso é porcaria, sem função nenhuma. Aliás, não ter função era uma das intenções da banda, que começou a subverter a ordem até na sua própria concepção estética: eles se achavam psicodélicos, antagônicos ao movimento de Los Angeles. Inicialmente eles se proclamaram The Psychedelic Stooges, algo parecido como Os panacas psicodélicos, em tradução livre.

Eles achavam que ser psicodélicos era construir seus próprios instrumentos, como Harry Partch, um obscuro e injustiçado compositor americano, que desenvolveu uma marginalizada estética baseada em escalas microtonais e atonais, fabricando seus próprios instrumentos para isso. É também de Harry Partch que vem boa parte da performance corporal de Iggy Pop no palco. Harry Partch fez uma junção de música, discurso e expressão corporal em várias de suas peças, entre elas a descomunal interpretação operística do poema “Sophocles’ Oedipus”, de Willians Butler Yeats.

Nos primórdios da banda a percussão era baseada em tonéis de metal vazios e outros apetrechos. Uma guitarra sem quase nenhuma técnica em volume estratosférico e um vocal desesperado, com Iggy Pop cantando suas apatias vestindo uma camisola de maternidade e empunhando uma tábua de lavar amplificada. Eles evoluíram, se é que se pode afirmar isso, para uma banda com formação comum e impressionaram um executivo da Electra, que havia viajado para Detroid com o intuito de contratar o MC5. O som não impressionou tanto, mas Iggy Pop cortando o próprio corpo com vidro e se lambuzando com pasta de amendoim no palco, enquanto berrava o seu tédio, sim.

Para registrar o primeiro disco, intitulado apenas “The Stooges”, a banda precisou completar o material, pois eles só tinham cinco músicas no repertório: 1969; No fun; I wanna be your dog; We will fall e Ann. A banda vivia de longas improvisações no palco. Boa parte delas está registrada em seus discos, com sessões históricas, repletas de álcool, drogas e experiências diversas. As músicas Real cool time; Not right e Litle doll foram compostas, então, em uma madrugada e tocadas pela primeira vez no estúdio. Uma boa parte de We will fall também foi acrescida no estúdio.

O disco teve a produção de ninguém mais do que John Cale, líder do Velvet Underground, que ainda tocou piano em I wanna be your dog e viola em We will fall. O som é cru, é visceral, é na cara, sem constrangimentos de nenhuma espécie. A maioria composta em três notas, suficientes para descabelar qualquer um que busque complexidade harmônica, como também suficientes para entusiasmar qualquer um que esteja cansado de hermetismos musicais e prolixidades discursivas.

1969 é sem nenhuma esperança. É uma espécie de shufle anarquista, abre o disco como um verdadeiro cartão de visitas de vendedor de aspirador de pó. A ironia fica por conta desse vendedor estar em um bairro pobre, sem grana e sem futuro. O wha da guitarra de Ron Asheton ficou marcado para sempre, esse é um dos hits mais Cult de todos os tempos. I wanna be your dog é um clássico, um hit natural, com uma seminal parede fuzzy de guitarra, além de uma percussão pernóstica, que lembra sons de natal. Iggy Pop não canta essa música, ele proclama. Imperdivelmente sujo, marginal, submundo.

We will fall é uma faixa bizarra e experimental. Tem o minimalismo apresentado muitas vezes nas músicas do Velvet. Depois de tanto tempo passado o clima soturno dessa faixa não envelheceu e é o que mais se aproxima de uma pegada psicodélica. No fun, a faixa seguinte, é deliciosamente marginal, um hino ao desperdício juvenil, retratando a falta de perspectiva americana. A bateria de Scott Asheton e o baixo de Deve Alexander recebem o auxílio de palmas, bem ao estilo roots. Essa faixa tem a autenticidade cretina que faltou aos Rolling Stones e a ironia satírica marginal que nunca esteve presente nos Beatles. Também não sei se era preciso.

Real Cool time, Ann, Not right e Litle doll fecham o disco com o estilo legítimo dos Stooges: com ironia e improvisações, com direito à lisergia em Ann e ao peso cru nas duas últimas músicas. Esse é um disco histórico, não por pertencer a um passado rico artisticamente, mas por ter feito história, na concepção maior do termo. A grande contribuição desse disco é justamente fundar a não estética, o não virtuosismo. Sobre ele pesa a atitude de uma geração que se viu ludibriada pelos ilusionistas do way of life americano. Ouvir esse disco depois de tanto tempo é muito gratificante, principalmente para aqueles que entendem o rock como um meio e não como um fim.

domingo, 9 de novembro de 2008









Clássicos







King Crimson – Larks’ Tongues in Aspic
Uma nova linguagem no progressivo

Esse disco marca não só uma guinada na carreira do King Crimson, ele funda uma nova dinastia estética no rock, colocando Robert Fripp, de uma vez por todas, na galeria dos imortais, não aquela burocrata e patética das paradas de sucesso e das premiações da própria indústria fonográfica, mas aquela dos caminhos alternativos, experimentais e inventivos, a mesma em que estão cagando e andando para o mundo dos negócios: Frank Zappa; Hermeto Pascoal; Tom Waits; Ravel; Debussy; Egberto Gismonti; Bela Bartók; Cartola e tantos outros.

Larks’ Tongues in Aspic foi lançado depois do disco ao vivo Eahtbound, de 1972, que contém algumas perfomances no Estados Unidos, com uma formação de transição, ainda com Boz Burrel, Mel Colins e Ian Wallace, herdada do disco Islands, de 1971, então o último disco de estúdio da banda, que registrou orquestrações com sopros e linhas melódicas nitidamente dentro do padrão Beatles de cantar.

As menções aos Beatles já estavam no genial disco Lizard, de 1970, na música jazzística e cheia de dissonidos, Happy Family, que narra o fim da banda, em que na letra Paul é Judas; George é Silas; Ringo é Rufus e John é Jonah. Esses eram registros em que Robert Fripp aparecia com guitarra com timbre limpo e tocando violões diversos. Os arranjos dessa fase da corte do rei Crimson, eram pautados no jazz e na música clássica de vanguarda, com fugas e contra-pontos desconcertantes. O som era leve, privilegiava os timbres mais acústicos e as sonoridades elétricas de cordas do mellotron, além dos diversos aspectos experimentais e psicodélicos.

Então a banda é toda mudada e o som também. Com Robert Fripp tocando mellotron, violão, parafernálias eletrônicas e uma guitarra lancinantemente distorcida, acordes dissonantes, saltos de cordas e intervalos alucinados em seus solos metafísicos, a banda formada por Bill Bruford na bateria; John Wetton no baixo e voz; David Cross nos violinos, violas e mellotron; e Jamie Muir nas percussões diversas; dá à luz um dos mais importantes discos da música universal. Esse é um disco fundante e fundamental. É o disco quem tem o peso de um mamute e a leveza de uma pluma. E acima de tudo, é um disco que tem história para contar, basta detoná-lo no headphone.

A estética de Larks’ Tongues in Aspic é essencialmente experimental, climática e cheia de dinâmicas orquestrais, aliada a um peso, a uma massa sonora jamais vista até então no rock progressivo. As colagens, o estranhamento, as intervenções, a circularidade, a fragmentação e a descontinuidade, bem como os ruídos e as escatologias diversas, típicas do universo sonoro de Robert Fripp, são matizadas aqui ao extremo. O abstracionismo e a concretude de vanguarda, na linha de Edgar Varese e Bela Bartók, estão presentes, de forma dialética, transformando a pasmaceira em inquietude.

Até no tempo total de música, 46’: 45’’, o disco é enigmático. A química da banda é um caso à parte. Músicos de longa estrada e da cena de vanguarda deram uma sustentabilidade sonora inigualável, embora porcarias como Dream Theatre e outras do gênero tentem imitar na maior cara-de-pau do mundo. A cama sonora feita por Bruford, Wetton e Muir, com uma complexa teia rítmica e timbrística, proporcionam a Fripp e Cross um universo inteiro de experimentações e devaneios.

Uma vez eu li numa revista dessas aí, Humberto, aquele imbecilóide maior da gosma Engenheiros do Havaí, afirmando que dava graças a Deus nenhum baterista seu ter influências do timbre de caixa utilizado por Bill Bruford. Ainda bem. Esse é um som para poucos, não é para quem tem ouvidos, é para quem escuta. As passagens de guitarra e violino são de arrepiar, bem como os arranjos de percussão e baixo, faixas como “Lark’s tongues in aspic”, parte I e II e “Talking Drum”, são de impressionar, tamanha a dinâmica, a concepção estética e a atitude musical.

Vale ressaltar aqui que “Lark’s tongues in aspic” , um dos maiores clássicos do rock progressivo, tem na realidade quatro partes e um Coda. A terceira parte apareceu em 1984 no disco Three of a Perfect Pair, sendo a última faixa do disco, com uma estética eletrônica e absolutamente experimental, com as mesmas células rítmicas da parte I. Essa formação tinha Adrian Belew, Tony Levin e Bill Bruford. A quarta parte e o Coda apareceram em 2000, no disco The ConstruKction of Light, sendo a parte vocal "I Have a Dream", colocada no final. Essa formação tinha Belew e mais Trey Gunn e Pat Mastelotto.

O disco traz, além das duas partes de “Lark’s tongues in aspic” e de “Talking Drum”, a belíssima e sentimental “Book of Saturday”, confirmando a veia baladeira de Fripp, e a clássica “Easy Money”, que contém um dos solos mais inspirados de Robert Fripp, além de um clima e dinâmica descomunal. A pegada dessa música é para detonar os auto-falantes, peso e experimentação de altíssimo nível. O clima de “Talking Drum” é deliciosamente épico e surreal, com os solos aloprados de Cross e Fripp, resume o próprio disco, como sendo uma peça imperdível, autêntica e altamente contemporânea, com quase quarenta anos de existência.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Vitrine


Milton Nascimento & Jobim Trio
Novas Bossas

O cantor e compositor mineiro lança a sua espécie de homenagem à bossa nova, acompanhado da obviedade sonora do Jobim Trio, formado por Daniel Jobim, no piano; Paulo Jobim, violão e Paulo Braga, bateria; com participação especial de Rodrigo Villa, no baixo acústico. O disco, com excelente trabalho de produção e fino acabamento de produto, recebeu o curioso nome de “Novas Bossas”, que de novo não tem absolutamente nada, excetuando-se o fato de Milton Nascimento se apresentar em melhor fase, o que tinha se tornado raro nos últimos tempos.

Esse é sem dúvida nenhuma um produto para exportação, com nítido aproveitamento dos nomes envolvidos no projeto, bem como a oportuna carona nas possíveis e impossíveis homenagens mercadológicas à bossa nova. Apesar do forte cheiro de armação, Milton Nascimento faz valer à pena a compra desse cd, em diversos momentos. Seu poder vocal parece estar de volta e sua potência interpretativa supre a falta de arranjos classudos, quase uma constante nesse disco, que muitas vezes patina na mesmice dos estandartes.

O repertórtio escolhido faz jus aos nomes envolvidos, são composições de Milton Nascimento, Antônio Carlos Jobim, mais uma de Vinícius de Moraes, outra de Dorival Caymmi e a belíssima “Tudo o que você podia ser”, de Lô Borges e Márcio Borges, que abre o disco, remetendo o ouvinte a um tempo em que se sabia compor canções na música popular brasileira. Algumas recriações instrumentais soam miseráveis, diante do que já foi feito em outras interpretações, como em “O vento”, “Chega de saudade” e “Trem de ferro”.

JobimTrio é um daqueles grupos brasileiros que nem Ford e nem sai de Sinca, piano pobre, violão desaparecido, os dois se sustentam na base segura de Paulo Braga e Rodrigo Villa. As concepções de arranjos são por demais econômicas diante da envergadura harmônica e melódica das composições, excetuando-se a pobreza de “O vento”, de Dorival Caymmi – eternizado não sei necessariamente porquê - , e “Medo de Amar”, de Vinícius de Moraes - responsável por alguns dos versos mais ridículos da mpb, coisas do tipo: “Mas se ela voltar / que coisa linda, que coisa louca / pois há menos peixinhos a nadar no mar / do que os beijinhos que eu darei em sua boca...”

Milton Nascimento é uma história à parte, não vive à sombra de ninguém, principalmente nesse disco. É certo que ele vem de lançamentos equivocados, mas também é certo que ele não perdeu a majestade, nunca. Que delícia é ouvir, mesmo com esse acompanhamento intimidado, a sua interpretação para “Tudo que você podia ter”, “Cais”, “Inútil paisagem”, “Tarde” e “Caminhos cruzados”. A sua voz e a sua interpretação, com seus falsetes e sua modulações, permitem ao ouvinte mais atento, perceber como se processa o fenômeno de salvamento de uma música, quando o cantor carrega nas costas uma banda inteira.

A produção do disco é impecável, visto o quanto é difícil captar a sonoridade acústica dessa formação. Milton e Jobim Trio assinam a produção, juntamente com Chico Neves. O disco leva o selo Tribo, de Milton Nascimento Produções. As gravações aconteceram no Bituca’s Studios, Daniel Jobim Studio’s e Estúdio 304. A sonoridade geral do disco é cheia de graves profundos, médios fartos e poucos agudos, mas o resultado é excelente, top de linha, sem pasteurizações digitais. A mixagem privilegia a voz, o que de fato deveria acontecer, e negligencia os violões, o que torna-se o pecado da produção, mesmo tendo em vista a falta de um grande violonista.

Esse é aquele disco que, para os amantes das harmonias complexas e da infantilidade das letras da bossa nova, é um verdadeiro achado, digno de ser escutado em uma varanda ampla, combatendo o calor com a aproximação dos amigos e o acomodamento emotivo de um bom vinho. Já para aqueles mais exigentes e desconfiados da recente produção nacional, vale a pena comprar nesse exato momento, pois ele custa apenas nove reais e noventa, nas lojas americanas do shopping de Juazeiro do Norte, corra, que o preço original dele é vinte e nove reais.


Aos Vivos

O furacão Elis em Montreux

Esse é um daqueles discos essenciais, que você deve ter em casa como remédio para os inúmeros males da civilização. Elis Regina Montreux Jazz Festival, remasterizado e com gravações inéditas, faz um extenso trabalho de magia em seu espírito, em sua libido, em sua autoestima, em sua suprema condição humana. Não há como, entre outras inúmeras coisas, não se rebelar contra as manobras do destino, ao ouvir esse show fenomenal.

O disco faz parte do projeto Warner Arquivos, supervisionado por Charles Gavin. Existe uma outra edição, que é a edição em cd, do disco lançado originalmente em 1982, bem diferente desse. Essa edição é remasterizada e tem a inclusão de quase todas as músicas que compõem a fita original com as duas apresentações da inesquecível cantora brasileira em terras suiças. Além disso, o cd contém uma extensa nota de apresentação assinada por Nelson Mota, que acompanhou tudo de perto.

Na realidade Elis se apresentou no festival na mesma noite em que tocou Hermeto Pascoal e banda, lendário show também registrado em disco e relançado pelo mesmo projeto da Warner. Em uma noite furtiva de julho de 1979, Elis era a atração principal de uma noite que entrou para a história da música universal. Hermeto e Elis, duas iluminações integrais, dois shows seminais, no caso três, pois Elis fez antes, no mesmo dia, uma matinê, lotada de fãs enebriados pela sua arte maior. Estou escrevendo ouvindo o disco dela, depois de ter escutado integralmente o de Hermeto, a emoção me toma e as lágrimas são inevitáveis. Pausa.

Existe uma história contada por Nelson Mota, que diz da necessidade de uma matinê, quando Claud Nobs, organizador e apresentador do festival, se deparou com uma multidão querendo ver Elis, já com os ingressos esgotados. Ela foi convencida e fez esse show extra. De acordo com Nelson Mota, a apresentação foi impecável, fez com que a casa viesse abaixo, o público delirou com a força daquela estrela no palco. Já a apresentação de gala, que seria para fechar a noite, empolgou menos, talvez pelo desgaste do primeiro show.

Elis estava de contrato novo em uma nova gravadora, a Warner, depois de quinze anos integrando o elenco da Polygram. Uma das exigências de contrado era o lançamento desse show, para a projeção internacional da cantora. Para Elis, sua segunda apresentação foi um fiasco, justamente aquela que seria motivo de lançamento. Ela pediu ao produtor Midani que não lançasse esse disco de forma nenhuma, nem depois da sua morte. Daí a gravação só ter aparecido em 1982, já como lançamento póstumo.

Há quem diga que o show de Hermeto Pascoal abalou a cantora, que era sempre competitiva. De fato, Hermeto, que se apresentou antes dela, teve de voltar várias vezes, teve seu nome ovacionado pelo público, que enlouquecido não queria que ele saísse do palco. Hermeto Passava por um grande momento internacional, gravando com grandes nomes e fazendo shows internacionais que eram capas das revistas mais importantes de jazz. Não acredito que a apresentação de Elis não tenha sido melhor por causa de uma possível intimidação, isso é lenda. O fato é que ela estava cansada devido ao show das três da tarde, com intenso desgaste físico e emocional, em que ela foi ovacionada da mesma forma que Hermeto foi.

Quando terminou o show de Elis, Claud Nobs chama inesperadamente Hermeto Pascoal ao palco, logo em seguida ele chama Elis Regina e eles entram para a história com três interpretações fenomenais: “Corcovado”, “Garota de Ipanema” e “Asa Branca”. Esse é um dueto que espantou a crítica musical, surpreendida pela extensão insondável de talento, técnica, sensibilidade e senso de improvisação incalculáveis. Esse é um momento mágico desse disco, necessário para qualquer ser vivo, pensante e emotivo.
A banda que Elis levou para Montreux é qualquer coisa de genial. César Camargo, no piano e arranjos; Hélio Delmiro, na guitarra; Paulinho Braga, na bateria; e Chico Batera, na percussão. Para acompanhar o talento de Elis, tinha que ser desse naípe para lá. O repertório foi escolhido visando o mercado internacional e continha algumas bossas que Elis detestava e outras velharias doseu repertório de carreira, que ela ficava contrariada em ter que interpretar novamente. Mas ela adicionou alguns dos seus preferidos, como Djavan, sendo praticamente lançado, Fátimas Guedes, Tunai, Milton Nascimento, Gilberto Gil, João Bosco e Ivan Lins.

Não há o que comentar sobre as músicas e as interpretações, a não ser que são de outro mundo. Só ressalto que o que é uma apresentação comprometedora para Elis Regina, é infinitamente superior a qualquer apresentação de qualquer uma dessas cantoras de meia-tigela que aparecem berrando feito cabra no cio, tais como a animadora de trio elétrico Ivete Sangalo, a breguíssima Ana Carolina, e o pastiche pop Cláudia Leite. Peço desculpas pelas citações, mas foram inevitáveis.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008








Achados e Perdidos

Gentle Giant – Octopus
A criatividade imortal


Existem alguns discos que são fundamentais para determinados artistas. Outros que são fundamentais para os fãs. E outros, ainda, que são fundamentais para a própria existência de uma estética, de uma tendência como movimento artístico ou da própria música como manifestação da civilidade humana. “Octopus”, do Gentle Giant é tudo isso e mais um pouco.

Inevitavelmente existem aqueles detratores do rock progressivo. Isso é natural, uma vez que o esclarecimento não é mercadoria que se compre em supermercado, muito menos em bodegas. É claro que existem os aspectos negativos e massificantes dessa vertente do rock dos anos 70. Os diluidores existem em qualquer manifestação artística, e que não seja por eles, que tudo deverá ser nivelado por baixo. Essas conjeturas maniqueístas não excluem o Gentle Giant e nem o disco “Octopus”. Para dúvidas resta o conhecimento de causa, já que questão de gosto não se duvida, se lamenta.

“Octopus” é uma daquelas obras geniais que necessitam de manual de instruções, não pela sua prolixidade, mas pelos seus desdobramentos literários e musicais. Esse é o quarto álbum da banda britânica, formada pelos irmãos Shulman, a partir da dissolução da banda Simon Dupree and The Big Sound. O disco marca uma definição sonora da banda, que até então já contava com três discos lançados: Gentle Giant (1970); Acquiring The Taste (1971); e Three Friends (1972).
“Octopus” foi lançado em 1972 e teve pouca repercussão comercial. Parte da crítica recebeu o disco com reservas e parte dela fez caras e bocas afetadas, tal qual cafetinas hávidas por carne fresca. Vida inteligente nunca foi o forte da crítica, comprometida com os jabás e as conveniências do mercado. São inúmeros os elementos musicais que compõem as texturas de “Octopus”, uma estética que se estrutura dialeticamente entre o novo e o antigo, através de intertextualidades, metalinguagens e estranhamentos.

Além de letras irônicas, de escatologias diversas e citações literárias do autor renascentista francês François Rabelais, através dos seus personagens Pantagruel, Panurge e Gargântua, o disco contém traços da música minimalista, da música clássica de vanguarda, do concretismo, do barroco, do contraponto, das fugas, dos madrigas, do cancioneiro medieval, do folclore celta, dissonâncias infinitas, do rock, do hard rock, do blues, do soul e do pop.

“Octopus” é um disco para ser apreciado, degustado, explorado, de preferência através de um bom headfone. Não que um volume na tora não resolva de vez. Esse é um disco para contrair as bolas e dilatar as vaginas, bem como escalonar os mais longínguos recantos do cabeção. Não tem contra-indicações, a nãos ser em casos típicos de possessão cafuçú, casos em que só o suicídio social resolve.



“The Advent of Panurge” abre o disco com elegância magistral, através de uma introdução em contraponto vocal, seguida de uma levada sinuosa, com mudanças de andamentos e convenções sutis e um timbre de órgão inigualável. Vale ressaltar aqui o trabalho harmônico estruturado em fragmentos de acordes. Essa é uma faixa ambiental, cheia de texturas com a marca Gentle Giant. Uma das principais composições do rock progressivo.

“Raconteur Troubadour” é uma releitura dos sons medievais, através de uma abordagem moderna. Grande trabalho de violino e piano elétrico. Vocal para iniciados e instrumental com direito a fugas diversas. “A cry for Everyone” é um rockão nada básico, com uma pegada que flutua entre o peso e a sutileza, com o entrelaçamento harmônico e melódico típico do Gentle Giant. Essa é uma verdadeira aula de timbres e combinação instrumental. É um clássico da banda. É para ser detonada no volume 100.

“Knots” é uma peça minimalista por excelência, com intricado contraponto vocal, células harmônicas, fragmentos de acordes, fugas e e mais fugas vocais. Com certeza foi aqui que o Quenn chupou geral seus vocais. Essa é uma faixa seminal. Imperdível. Logo em seguida tem aquela da “moeda”, “The Boys in The Band”, um clássico instrumental com todo o peso da marca Gentle Giant. Essa é para ouvir e se transportar para a galáxia mais distante, de preferência escutar em algum lugar alto da Chapada do Araripe, de forma que você veja o vale inteiro, com suas luzes brilhando como estrelas no chão.



“Dog’s Life” é uma música feita para os roadies da banda e satiriza a vida cheia de correria, bebedeiras e histórias malucas. Nem por isso a qualidade cai, muito pelo contrário, predomina o experimentalismo concretista e de vanguarda, com timbres pra lá de exóticos. É a faixa mais lisérgica do disco, só para iniciados. “Think of me With Kindness” é uma balada delirante, com uma melodia fenomenal, para ser escutada sempre nos momentos mais inusitados.

“River” fecha o disco com a mesma elegância com que ele foi aberto. Obra-prima. Todos os elementos do universo progressivo do Gigante Gentil estão nessa composição. Essa é uma faixa excepcionalmente climática, com efeitos diversos, fragmentos de cello e violino, além das mudanças de andamento. O solo de guitarra de Gary Green é muito bem trabalhado, com um timbre imbatível. A banda dessa obra de arte é:

- Gary Green / guitarras, percussão - Kerry Minnear / teclados, vibrafone, percussão, cello, Moog, vocais - Derek Shulman / vocais, alto saxofone - Philip Shulman / saxofone, trompete, mellofone, vocais - Raymond Shulman / baixo, violino, guitarrra, percussão , vocais- John Weathers / bateria, percussão, xilofone

segunda-feira, 13 de outubro de 2008




Clássicos

Frank Zappa and Mothers of Invention
One Size Fits All

O maior compositor do rock deu de presente para a humanidade esse disco em 1975, quem quiser achar ruim que ache. Zappa é a maior referência de qualidade no universo pop universal. Da mesma forma que colecionava admiradores, colecionava também detratores, devido ao seu humor ferino e sua intensa crítica aos costumes americanos. Ele não perdoava ninguém e era tido por muitos como politicamente incorreto. Que se foda quem quiser. Ele era e é mais genial do que fantástico.

Esse disco foi gravado simultaneamente com os discos “Apostrophe”, “Roxy & Elsewhere” e “Bongo Fury”, praticamente com a mesma banda, sem dúvida nenhuma a melhor formação do Mothers. A linha é a mistura de elementos do jazz, da música clássica contemporânea, blues, trilhas para desenhos animados e soul music. As letras são corrosivas, cheias de alusões sexuais e vitupérios contra vários tabus, além de uma tirada de onda monumental com o inconsciente coletivo americano em “Inca Roads”, faixa que abre o disco.

“Inca Roads” tem uma pegada monumental, com uma introdução cheia de teclados lisérgicos de George Duke. As linhas de vocais são do outro mundo, como sugere a própria letra da música, com Zappa e Napoleon Murphy Brock fazendo intervenções extremamente cínicas. Depois de um turbilhão de convenções e harmonias chapantes, a música deságua num dos solos mais iluminados de toda a galáxia, uma habilidade de mestre no wha wha. Obra prima. Inesquecível. Sublime. Do caralho, resume melhor a sensação.

“Can’t Afford No Shoes” e “Sofá No.1” jogam o ouvinte em uma outra dimensão, com direito a guitarra distorcida e letra mais do que irônica, em “Can’t Afford No Shoes”, a linha harmônica começa simples e depois complica. O trabalho de slide guitar é demais, bem como os vocais. Isso é que é pop de vergonha. “Sofá No.1” é uma das melodias mais brilhantes do mago, com direito àquelas linhas malucas de vibrafone de Ruth Underwood. Clássico zappeiro duca.

“Pó-jama People” é uma faixa inexplicável. Simples, direta e fenomenal. Zappa, que é o rei dos timbres, - não existe outro igual - descola uma timbragem de médios, através de um wha wha, de outro mundo. O solo é enfurecido e recebe uma base sofisticada, com muito swing, da bateria de Chester Thompson e do baixo de Tom Fowler. Essa é pra ser escutada no talo, de forma que algum alto-falante peça pinico, entorte.

“Florentine Pogen” é mais uma daquelas faixas obscuras do universo bizarro de Frank Zappa. Composição complexa, cheia de mudanças e convenções que desempregam qualquer banda cover. Sem dúvida nenhuma essa é uma das melhores composições de todos os tempos. Aqui você encontra ironia, cinismo, humor, e muito, mas muito talento mesmo. É pra ser escutada sem nenhum pentelho por perto, se não ele pede pra pular a faixa.

“Evelyn, A Modified Dog” é hilariante, faz parte do humor ferino de Zappa. “San Ber’dino” é outra pérola do repertório bizarro de Zappa. Uma história cretina sobre um casal mais cretino ainda. Aqui Charlie Guitar Watson faz uma participação mais do que especial. Essa é pra ouvir no talo também, com belo arranjo de guitarra e levada final irresistível. O vocal de Watson é lendário. Aliás, Zappa era um mestre em arranjar esses vocais esquisitos.

“Andy” é um dos maiores clássicos de Zappa. Simplesmente incendiária. Watson também rasga o vocal aqui, junto com Napoleon Murphy Brock. Também é para ser ouvido enchendo o saco daquele vizinho careta, que passa o domingo ouvindo a merdologia dos “Aviões do Forró”. Levada de guitarra massa, cheia de contra-pontos e fragmentos harmônicos. A linha vocal dessa música também é lendária, impagável. O solo é um caso à parte, com partes agudas que não se sabe ao certo onde Zappa está tocando.

O disco fecha com “Sofá No. 2”. Essa é uma das letras mais bem sacadas do disco e do mundo Zappeiro: uma auto-descrição do sofá jamais vista, com um vocal em falsete de George Duke de tirar o fôlego. Parte da música é cantada com sotaque alemão. O disco tinha que ser encerrado assim, de forma clássica, bem aos moldes Zappeiros, estranhamento puro. Esse é o tamanho único de Frank Zappa com várias indicações e contra-indicações. Imperdivelmente clássico.