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terça-feira, 9 de setembro de 2008




Achados e Perdidos

Qualquer Coisa
É raro e é Jóia

Caetano Veloso divide unanimidades. Com suas teses mirabolantes ele refaz os conceitos de gostar. Nem sempre é coerente em suas opiniões e nem sempre é coerente em suas composições, mas a sua obra como um todo é mais do que coerente, é sutilmente genial. É preciso aprender a gostar de Caetano Veloso. Um bom começo é ouvir e pesquisar “Qualquer Coisa”.

O ano de lançamento desse disco é 1975, em plena ditadura militar, em plena resistência cultural. Mas esse não é um disco de confronto aos anos de chumbo, muito pelo contrário, é um disco cheio de referências estrangeiras. Por isso ele logo foi taxado de alienação pura. O disco faz parte de um projeto maior. Foi lançado junto com o disco “Jóia”, sendo os dois lançados ao mesmo tempo.

O que liga esses dois trabalhos é a homenagem direta aos Beatles, através da releitura de quatro músicas do quarteto: "Help” em "Jóia”, Eleanor Rigby", "For No One" e "Lady Madonna" em "Qualquer Coisa". As capas fazem uma intertextualidade toda especial. A capa de “Jóia” é um diálogo com a capa do disco “Two Virgins”, de John Lennon e Yoko Ono, ambas censuradas pela nudez dos artistas. Já a capa de “Qualquer Coisa” é um diálogo com a famosa capa do disco “Let it Be”, dos Beatles, o último lançamento do quarteto inglês.

Se no cenário internacional o rock começava a demonstrar cansaço pelas tendências progressivas e pela canastrice do rock de arena, bem como o punk e a disco music prometiam muita barulheira de protesto e diversão imbecilizada, respectivamente, Caetano Veloso apresentava um intimismo minimalista que quebrava o clima geral, com suas canções sobre amor e suas homenagens nada póstumas a quem ajudou a mudar o comportamento social daquela juventude.

“Qualquer Coisa” é denso em sua poesia e leve em seus arranjos. Tudo na medida certa, sem tirar nem pôr. Verdadeiras pérolas foram lançadas aos porcos fardados. “Qualquer Coisa”, “Da Maior Importância” e “A Tua Presença Morena” são fenômenos poéticos raros, que não perdem força com a retirada da música. As releituras dos Beatles são singulares. Nunca ninguém fez nada parecido com o que Caetano e banda fizeram com “For no One”. João Donato e Perinho Albuquerque deram um toque universal ao individualismo do fã diante dos seus ídolos.

Já a versão de “Drume Negrita” caberia muito mais em boa parte do repertório de “Jóia”, por ser descartável e sem nenhuma espécie de junção estética, apenas uma versão com reservas. Ainda no campo das versões, Caetano Veloso acerta no alvo em sua releitura de “Jorge de Capadócia”, de Jorge Ben, uma faixa enigmática e cheia de força esotérica, rápida e rasteira como um raio vingador. Em “Samba e Amor”, de Chico Buarque, Caetano faz música proletária sem ser panfletário.

“Qualquer Coisa”, a música, ainda tocou no rádio. Era um tempo em que o rádio tinha representatividade na construção do imaginário popular e a distância era algo doce, que transformava ansiedade em magia. O estranhamento da poesia, com aquele papo todo torto, aproximava o poeta do concretismo paulista ao mesmo tempo em que afastava o compromisso irrefutável de se fazer guerrilha com a arte. Hoje eu compreendo isso, naquele tempo não. Mas o tempo também não tem coerência.

domingo, 7 de setembro de 2008

Leninha in Blues, o Show

Eu não sei necessariamente quantos mistérios existem na afirmação categórica de que o Cariri é o berço da cultura. Sei que essa afirmação tem um arcabouço e tanto de inferências. Nem sempre existe consenso sobre isso. E não deve ter mesmo. A questão deve sempre ser mantida em aberto, principalmente quando ela, a cultura, parece sofrer um cerco aniquilador jamais visto em nossa história. Mais um exemplo foi dado ontem, no novíssimo teatro do Sesc, em Juazeiro do Norte, o cartaz anunciava Leninha in blues.

O show estava lá. O público não. Vergonhosamente não. Ao todo eram 12 pessoas, sendo público mesmo eu e Mônica, minha mulher, mais Jean Nogueira e Socorro Moreira. Os outros eram ou parentes de Tiago Correia - guitarrista de Fortaleza, que acompanhou Leninha, junto com Manel de Jardim, a lenda – ou integrantes da equipe de produção do Sesc. Depois do show iniciado apareceram mais alguns outros, não mais do que seis e que desapareceram antes mesmo do show terminar.

Leninha foi de uma dignidade sem tamanho. Fez o seu show com uma entrega artística rara nos dias atuais, em que qualquer banda merda de barzinho assume os ares de personalidades máximas do show busines, com direito a poses cretinas e comunidades orcutais, assim mesmo, com as mesmas letras que escrevem orifício. Mesmo a apresentação contendo algumas restrições, o trio se superou em dignidade.

Daí os velhos questionamentos: faltou público por causa da atração? Ou foi por causa do formato, sem banda? Ou será que não foi por causa do repertório de Leninha, que sempre repete as mesmas músicas de Janis Joplin e Cazuza? Ou por causa da produção? Ou ainda por causa da divulgação, eterno problema em se tratando de Sesc, (basta lembrar todas as edições das Mostras)? Para muitos esse pode ser um terreno minado, exatamente por causa dos mimos, essa estranha força que assola a lona colorida do circo artístico caririense. Para mim, não.

Antes de mais nada é preciso saber com quantos reais é feita uma produção dessas, bem como quais são realmente os interesses em jogo. A verdade é que santo de casa não caga milagres. Cagam os de fora, recebem cachê significativo, tratamento de estrelas sem nenhum céu e depois saem daqui com a certeza de que estiveram em uma província, ainda no campo das abastanças, basta lembrar o último show do “Nação Zumbi” ou o último show do “Trio Sotaque”, duas porcarias ambulantes aplaudidas por muitos. O fato é que aqui existe muita produção de gabinete, de edital e de projetos institucionais.

Outra reflexão imediata é sobre o público. Essa mesma produção trabalhou em um grande espetáculo: “Femininas”, muito bem produzido, com quatro das melhores cantoras do Cariri cantando bossa e outras ondas. Da mesma forma o público não compareceu. Da mesma forma o público também não comparece para prestigiar o que é caririense nas Mostras e nem na maioria dos espetáculos produzidos pelo Centro Cultural do BNB. Agora, basta trazer qualquer enganação de fora que o público aparece. Isso é culpa dos artistas ou da produção?

Leninha é uma cantora excepcional e uma compositora de talento, não precisa provar nada para ninguém. Mas ela precisa urgentemente mudar o seu repertório. Suas releituras de clássicos de Janis Joplin e de outros “clássicos” dos barzinhos, tornaram-se enfadonhas. Todo o seu talento deveria se voltar para suas composições, com banda completa. Mesmo assim o seu desempenho foi magistral. Nesse show ela deu mostra de toda a sua experiência de palco e de toda a sua força como bandlead, usando e abusando de gags vocais, técnicas de microfone, modulações e falsetes de tirar o fôlego. Leninha estava solta, impecavelmente talentosa, mas dentro de um repertório impecavelmente manjado.

Manel de Jardim no baixo e no violão fez parceria com Tiago Correia na guitarra. Dois músicos excelentes, mas em determinados momentos desentrosados. Se o número de ensaios não foi suficiente para dar unidade total, a carga de talento foi muito generosa para dar um tom todo especial ao show. Muitas improvisações inspiradas. Tiago tem um fraseado fácil, rockeiro, sem a caretice insuportável das vídeo-aulas, que formam guitarristas às dúzias aqui no Cariri e nas mais distantes cafuçulândias. Manel de Jardim dispensa comentários.

Eram 12 pessoas apenas e uma população flutuante mínima. Em compensação ao fiasco de público o palco estava lotado por uma multidão de talentos e uma infinita dignidade da maior e mais afinada cantora caririense. Leninha canta porque sabe e não porque no meio do show manda abrir uma rodinha para a natureba dançar uma ciranda.

sábado, 6 de setembro de 2008


Aos Vivos

Pepeu Mais Vivo do Que Nunca

Falar de Pepeu é praticamente falar da música brasileira em toda a sua extensão, com suas peculiaridades próprias e assimilações diversas. São poucos os guitarristas que têm a musicalidade de Pepeu, um dos maiores do mundo. Nesse registro ao vivo, no 14º. Festival de Montreaux, ele avessa a guitarra, a guitarra baiana, o cavaquinho e o bandolin, com uma capacidade monstruosa.

Os shows de Montreaux já são manjados, uma mistura esquisita em que pesa mais o mercado do que o jazz em si. Vários artistas brasileiros já se apresentaram lá e ainda se apresentam. Existem várias armações, frutos de contratos de grandes gravadoras, que têm no evento o palco ideal para projeções maiores dos seus artistas. Essa apresentação de Pepeu não tem nada disso, é arte pura.

Pepeu estava no seu segundo disco solo, “Na Terra a Mais de Mil”, já com o respaldo da crítica do primeiro disco, “Geração de Som”. A fórmula era instrumental brasileiro misturado com uma pegada rockeira de primeira linha. O primeirão já foi uma porrada sonora, puxada pelo relativo sucesso de “Malacaxeta”, então na versão instrumental. O segundo teve mais percussão e mais repercussão, devido à balada “Meu coração”, que tocou bastante nos rádios, e a versão cantada de “Malacaxeta”, com letra de Caetano Veloso.

Muitos criticaram a decisão de Pepeu cantar, que tinha se vendido e tal. Não importa quanto ele cante e o que ele cante, o que vale é ouvir a sua guitarra, com seus timbres peculiares e suas afinações bizarras. Ele é que enrola os seus próprios captadores e faz as partes elétricas dos seus instrumentos, daí vem parte do seu som, sendo a outra parte talento puro e estilo próprio, sem caralho de vídeo aula ou babaquice de “intenção blues” nos modos mixolídio ou qualquer outra porcaria que o valha. Pepeu é intuição e inventividade, swingue no sangue, é malandragem de autodidata, que não precisa de afinador eletrônico.

Quando ele esteve pela primeira vez no palco de Montreaux foi com Gilberto Gil. Ele quebrou tudo, com solos memoráveis e uma energia contagiante, integrando uma das maiores formações da mpb naquela ocasião, uma superbanda. Ele voltou com a sua própria banda – e que banda velho!!! - , sendo a atração principal da noite. Não deixou por menos. Mostrou com classe o que é que um verdadeiro músico brasileiro é capaz de fazer com uma guitarra na mão. Só o disco, o produto em si, é que ficou mal pra caramba, cortaram grande parte do show e montaram um disco simples, sem muita qualidade sonora. Mas dá para viajar, e muito.

Depois da tradicional apresentação de Claude Nobs, o pau comeu redondo e sonoro. A primeira é um medley de chorinhos puxadas por um clássico do mestre dos mestres, Pixinguinha, “Lamento”. Parte da platéia gringa ficou calada, procurando entender, a outra parte, que era brasileira, já sambou. Foi o cartão de visita de Pepeu. Depois vieram “Noites Cariocas”, “Chuvisco no Samba” e “Riroca Swingue Branco”, todas com arranjo de regional no mesmo medley, com direito a cavaquinho, bandolin e outras bossas.

“Luz de Guadalupe” é um blues. Mas um blues fusion, misturado com o sotaque brasileiro. Né careta não. Uma aula de como não soar igual aos iguais, em um estilo cheio de cópias baratas, de paninho passado e tudo mais. Depois Pepeu abre a boca para cantar “O Mal é o que sai da boca do homem”, uma visão anarquista sobre a censura brasileira e uma escrachada apologia da liberdade. Argumentado sobre a inclusão dessa música no repertório ele riu e disse que era devido à censura ter vetado a execução da música no Brasil.

Em “América Tropical” e “Todo Amor ao Jimi”, Pepeu solta os dedos em dois improvisos inspiradíssimos, lisérgicos. A primeira tem uma harmonia complicada, cheia de acidentes e convenções, ele senta a mão, sem medo de errar. Na segunda Pepeu é sentimento puro, é de arrepiar, é pra ouvir no talo, encobrindo aquela merda de forró eletrônico que o seu vizinho escuta todo dia e toda hora. Essa é aquela balada pra ouvir depois da meia noite, sentado no batente, (lembra?), vendo o Cariri todo piscando suas luzes.

“Afoxé do Garcia” e “Rei do Baião” têm um balanço irresistível, você balança nem que seja a sombra. Jorginho Gomes é um dos maiores bateristas do mundo, toca sem pena, toca forte e de forma educada, isso se chama peso. Luciano Alves é quem pilota os teclados, um verdadeiro maestro, com grande senso de improvisação, sem cair no mecanismo da prática de estudos. O baixo fica por conta de Didi Gomes, outro irmão de Pepeu, cheio de Grooves e escalas descomunais. A percussão foi tocada por Charlie Negrita e Baixinho, sem comentários, é muito swingue. “Rei do Baião” é a faixa em que a sanfona mais do que especial de Oswaldinho aparece mais, pense numa levada doida.

“Blue Wind“, de Jean Hammer, imortalizada por Jeff Beck, encerra o disco de forma magistral, com pegada muito mais rockeira do que o arranjo original, além do molho todo especial da cozinha. Uma verdadeira aula de guitarra. O dueto de guitarra e teclado é justo, seguido de um solo alucinado de Luciano Alves. Pepeu sola com um timbre duplicado em oitavas. É curta. É pesada. É massa. Esse disco é obrigatório.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Clássicos

As baladas atormentadas
De Nick Cave

Nick Cave é cavernoso no próprio nome artístico. Mas a procedência cavernosa de Nick Cave não é pose. É existencialismo destilado em cinismo, em sátira, em carnavalização religiosa e questionamentos sociais e metafísicos. A mente humana para Cave é uma partitura, que ele mergulha com seu piano alado, muitas vezes muito próximo do piano que Murilo Mendes faz a sua mãe tocar em pleno caos.

“Murder Ballads” foi lançado em 1996 e traz em sua estética refinada, dez baladas sobre assassinos e assassinatos. É uma mistura de músicas do cancioneiro tradicional, composições suas e um cover irônico de Bob Dylan. Esse não é um disco comum e de forma nenhuma é destinado ao escutador medíocre. “Murder Ballads” tem um tom inquietante de esquina suburbana numa madrugada qualquer, enquanto a cidade espera baixar a fuligem do asfalto.

Na voz de Nick Cave as atormentações humanas dão um salto para além do cadafalso. O tema por si só já proporciona desdobramentos inusitados. A maneira como Cave aborda o tema acaba multiplicando essas possibilidades ao impossível. São detalhes sonoros, são entonações, são timbres arranjados exatamente para evocarem sensações das mais diversas, são ruídos perturbadores, são baladas que não são baladas, são universos paralelos dentro de uma regência mágica, que só Nick Cave poderia ter concebido. “Murder Ballads” é uma aula histórica de tensão artística.

A epifania e a catarse estão presentes em cada história contada. Remexer o lado obscuro da mente humana através da música requer requinte sentimental. E isso Nick Cave tem de sobra. O seu som é inebriante, o seu carisma vai desde um porra louca desses perdido numa multidão de concreto até à placidez intocável das paisagens bucólicas do imaginário coletivo. Esse é um disco que vai além da audição e atinge os aparatos ritualísticos da pós-modernidade, com todos os seus viadutos e imagens de alta-definição, bem como muquifos e becos existenciais.

“Song of joy” abre essa viagem soturna em tom profético, com uma carga dramática digna da apologia musical de Nick Cave and The Bad Seeds. Essa é uma das maiores obras-primas da música pop. Ela conta a história de um homem que tem sua mulher e suas três filhas assassinadas por um maníaco que escreve versos de Milton com o sangue das vítimas. É impressionante a textura criada pela banda. O guitarrista Blixa Bargeld consegue ilustrar o sofrimento daquele homem através de ganidos e espasmos de seu instrumento. A poesia dessa faixa é genial.

“Stagerr Lee” é uma música do cancioneiro tradicional, que aqui recebe um arranjo matador, sem trocadilhos. Existe um encantamento extremamente cínico nessa música. Sensações arrebatadoras podem ser notadas saindo dos auto-falantes como balas avermelhadas indo em direção à decadência do ser humano. Essa música narra um crime passional do cafajeste “Stagerr Lee”, com Blixa Bargeld extrapolando em sua estética minimalista de extrair sons esquisitos de sua guitarra.

O disco tem participações mais do que especiais, além da própria imanência da banda The Bad Seeds, na sua mais alta perfomance. P.J. Harvey faz dueto com Nick Cave em algumas faixas, com destaque para a belíssima Hanry Lee. A cantora australiana Kylie Minogue faz dueto com Cave na faixa “Where the wild roses grow”, responsável pelo sucesso de público e crítica desse cd. Essa é outra obra-prima do pop universal. Imperdível. Poesia em seu mais alto grau.

Depois de tantas idas e vindas sobre os rastros da alma humana, “Murder Ballads” encerra essa experiência transcendental com um cover de Bob Dylan, “Death is not the and”. Essa, que é uma das pérolas do repertório de um dos maiores poetas do mundo, recebe o tratamento ambíguo que seus versos exibem. É uma mistura de sátira e aconselhamento, alertando cinicamente que a morte não é o fim, nem como aniquilamento e nem como propósito.

Se você não conhece ainda esse disco, não perca a sua vida com futilidades, escute, compre e guarde e tenha as letras devidamente traduzidas. Insubstituível.

domingo, 24 de agosto de 2008




Clássicos

A rua misteriosa dos Stones

“Exile on main St.” é o típico album de rock cheio de mistérios. A própria banda foi envolvida ao longo da história por uma áurea de esquisitices e lances obscuros. E esse é justamente um dos encantamentos dessa banda, que é considerada por muitos como a maior banda de rock de todos os tempos. Há controvérsias.

“Exile on main St.” foi concebido como um disco duplo, com 18 músicas divididas em quatro lados. O clima difuso do lp começa pela capa, cheia de pequenas fotos aleatórias, cheias de bizarrices. Tal qual foi a gravação desse disco, que é uma mistura de sobras de estúdio, gravações guardadas entre 1968 e 1972 e material novo, composto para o lançamento.

As gravações foram iniciadas em um antigo banker da gestapo durante a Segunda Guerra Mundial, alugado por Keith Richards. Nellcôte, um antigo palacete localizado no interior da França, próximo à Nice, foi o palco de muitas histórias malucas. A piração tomava de conta do guitarrista, mergulhado em milhares de dólares investidos em heroína e todo tipo de droga existente. Lá eles receberam inúmeras visitas mais malucas ainda, como a de Burroughs, poeta beat; do novelista Terry Southern, também beat; e do compositor de country-rock Graham Parsons, falecido pouco tempo depois, vitimado por overdose.

Bill Wymam e Charlie Watts estavam em abstinência. Mick Jagger esteve ausente quase que o tempo inteiro, recém casado e com filho recém nascido. Keith Richards estava solto e comandou praticamente tudo. A zoeira foi tamanha que a polícia teve que exigir a expulsão das visitas intoxicadas. Logo depois de encerrada a temporada na França, o material foi levado por Mick Jagger para Nova York, onde inúmeras overdubs foram feitas por diversos músicos.

O resultado disso tudo é uma massa sonora tipicamente stoneana. Rock, soul, blues, booggie, shuffle, western e baladas formam o caldo desse disco de mixagem tosca e som cru, com a bateria de Charlie Watts como porto seguro. Esse é um disco para ser escutado no volume máximo, pois os instrumentos foram gravados praticamente na mesma altura dos vocais, causando um certo caos devido ao excesso de overdubs em muitas faixas. Tudo resolvido com alguns decibéis desaforados do seu som.

Mick Taylor salva inúmeras faixas com a sua pegada bluseira. Vários artistas tocaram contra-baixo, mas todos sem nenhum destaque. A guitarra de Keith Richards às vezes soa como seminal e às vezes soa completamente descartável. Mas o todo tem uma pegada incrível, inexplicavelmente genial. Esse álbum tinha tudo para ser péssimo, mas no entanto é uma verdadeira obra-prima, fruto dessa dialética de interesses e estéticas sonoras de seus músicos. Mick Jagger nunca foi um grande cantor, mas ele encanta e aqui a sua magia aparece de forma suprema.

“Rock Off”; “Rip this Joint”; “Tumbling Dice”; “Happy”; “Sweet Virginia” e “All Down the Line” são verdadeiros mísseis atômicos. Com certeza essa não será uma audiência normal, pois você sentirá um ambiente sonoro narcotizado o tempo inteiro, além do detalhe de você não entender praticamente quase nada do que Mick Jagger berra. Com o tempo você percebe que existem arranjos fenomenais de rock’n’roll por trás de tudo isso. A coesão da banda está exatamente nesse clima enfumaçado, difuso e tosco de se fazer música para ser ouvida em todo volume. Definitivamente esse não é um disco para conservadores ou puristas. Esse é o puro rock, igualado ao mesmo som alcançado por bandas como Faces, James Gang, Hot Tuna, ZZ Top, Neil Young e Crazy Horse, The Band e Rod Stewart em seus primórdios.

“Exile on main St.” é imperdível por diversos motivos: é um disco que exala mistérios; é um disco que fornece segredos sonoros a cada audição; é uma massa sonora de tirar o fôlego quando escutada no talo; e acima de tudo, é rock’n’roll na veia, com todos os requintes que o gênero proporciona. Esse é o tipo de disco que se você escutar uma vez, você jamais se livra. É um verdadeiro vício.

sábado, 23 de agosto de 2008





Históricos

A magia crua do
Creedence Clearwater Revival


O nascedouro da bicho-grilagem é a São Francisco maluca das décadas de 60 e 70. Músicos, escritores, poetas, pintores, e toda sorte de artista e vagabundo andavam por lá, atrás de uma penca de ácido pra ver vida mais colorida. Mas lá também é a fonte da magia musical do psicodelismo e dos seus desdobramentos. O som especial do Creedence vem de lá. Não é à toa que essa banda é seminal.

Em 1968 é lançado o primeiro disco do Creedence Clearwater Revival, tendo como título apenas o nome da banda, que foi retirado do nome próprio de um amigo de Tom Fogerty, Creedence Nubal, e de uma propaganda de cerveja: clearwater. O disco já trazia a pegada crua característica de algumas bandas do período. Além do som puro, valvulado, com amplificadores no talo, o Creedence tinha como amuleto o som rasgado da poderosa voz de John Fogerty, guitarrista solo, líder e compositor da banda.

Na realidade o Creedence é o resultado final de outras formações anteriores envolvendo John Fogerty, Stu Cook, baixista e Doug Clifford, baterista. Eles já foram The Blue Velvets, e Tommy Fogerty & The Blue Velvets, em 1959, e The Golliwogs, em 1964. Quando o selo Fantasy resolveu dar uma chance a eles o guitarrista base Tom Fogerty, irmão de John, tornou-se apenas integrante do grupo, o nome foi definitivamente trocado. Tom Fogerty já tinha um certo nome nas redondezas de “Frisco”, mas o seu som era muito careta, nada parecido com o que se tornaria o Creedence.

Guitarras Telecaster, Rickenbacker e Gretsch davam uma tonalidade de swamp rock, uma espécie de folk song eletrificado com rock’n’roll. Mas o Creedence era bem mais do que isso, era uma mistura de blues, resquícios do psicodelismo, música de protesto, improvisos e soft country. John Fogerty segurava a onda na frente da banda com seus solos pentatônicos e bluseiros e um vocal marcante, verdadeiramente impagável, com interpretações emocionadas e lendárias.

O primeiro disco da banda é um dos maiores discos de todos os tempos de vida do rock’n’roll, prenunciando uma carreira de muitas vendagens, sucesso de crítica e de público. Breve, com apenas sete discos oficiais, mas intensa, cheia de verdadeiros ícones da música pop universal. Várias gerações foram embaladas ao som do Creedence, que sempre manteve a sua pegada visceral e suas abordagens sociais e sentimentais.

O choque de egos decretou o fim da banda logo na primeira metade dos anos 70. O irmão Tom não aceitava o brilho intenso do líder. Tom morreu de aids - adquirida em uma transfusão de sangue, na década de 80 - sem falar com o irmão mais novo. Ambos tiveram alguns discos lançados individualmente. Tom era mais comercial e romântico. John é mais contestador e muito mais criativo e original, pena ele ainda sofrer problemas contratuais que o impedem de uma carreira mais profícua.

“I put a Speel on You” é uma balada estradeira fenomenal, arrasa quarteirões. Essa faixa é o cartão de visita de um dos maiores vocais do rock’n’roll. Coloque essa música no som do carro, em volume topado, pegue uma estrada reta, em cima da Chapada do Araripe, e encontre o nirvana, encontre o verdadeiro feitiço bradado a plenos pulmões por John. É sonzeira demais. Timbres limpos de guitarras, com leve trêmulo do ampli na guitarra de John e um vozeirão vindo do fundo da alma. Se você tá amando, cara, desesperadamente amando, redobre os seus sentimentos com esse mantra.

“Suzie Q” é um clássico, que na mão do Creedence ganhou vários minutos de improviso. John não é virtuoso, ele não frita o braço da guitarra feito rato de laboratório despombalizado. E é justamente por isso que ele é eficiente demais em seus solos sensitivos, embasados em puro sentimento musical. A banda faz a cama perfeita, com pegada na medida, nem peso demais e nem leveza demais. Imperdível. É pra balançar o cabeção o tempo inteiro.

O disco fecha com “Walk on the Water”, uma composição dos irmãos. Essa faixa tem o sabor de São Francisco, com um toque todo especial de fitas com rotações invertidas, bem ao gosto psicodélico, com direito a longa improvisação da banda. Não vou falar muito nem dessa e nem das outras faixas, justamente para você redescobrir esse tesouro. Os bons ventos anunciam reedições da discografia da banda, com remasterizações, faixas bônus e fotos inéditas. Dizem que é para o final do ano. É esperar pra comprar. Enquanto isso, aumenta aí, cara.

domingo, 17 de agosto de 2008





Achados e perdidos

Corações Futuristas
Egberto Gismonti Senhor do Tempo

Em meados dos anos 70 e primeira metade dos anos 80 o mercado fonográfico foi surpreendido com a evolução de um segmento instrumental logo rotulado de jazz fusion. Eram as trilhas abertas por Miles Davis e seus seguidores. Muitos conseguiram respeito e vendagens significantes. Outros não passavam de armações descaradas rumo ao musak, a trilha ideal para esperas de telefones e elevadores. É durante esse período que Egberto Gismonti constrói a sua imensa reputação internacional.

Vários músicos brasileiros estavam estabelecidos na gringolândia e participavam ativamente desse movimento, tais como Eumir Deodato, Raul de Sousa, Airto Moreira, Flora Purim e Sérgio Mendes, gravando com grandes nomes ou lançando seus próprios discos. Alguns moravam aqui, mas tinham contratos internacionais, tais como Hermeto Pascoal, Azymuth, João Donato, Baden Powell e Egberto Gismonti. A cena era propícia para fusões de todos os tipos: jazz, rock, samba, soul, funk, bossa, blues, tango, rumba etc.

A efervescência do mercado musical como um todo, proporcionou a sedimentação da globalização musical. Não eram apenas discos lançados internacionalmente, eram turnês mundiais, grandes festivais e fãs espalhados por todo mundo. Era a quebra das fronteiras, dos idiomas, das culturas, dos guetos musicais. Artistas do mundo todo comungavam o mesmo desejo de comunicação instrumental. Inúmeros discos descomunais foram lançados. Um deles é exatamente “Corações Futuristas”, de Egberto Gismonti, lançado em 1976, o nono em sua discografia.

Nesse disco o multiinstrumentista brasileiro faz uma fusão de jazz, rock, progressivo, clássico e música brasileira de altíssimo nível. Sem dúvida nenhuma, junto ao álbum “Slaves Mass”, de Hermeto Pascoal, “Corações Futuristas” é o lançamento mais emblemático do período. Com uma sonoridade acústico-eletrônica e uma orquestração fenomenais, o bolachão projeta Egberto Gismonti para a eternidade e o estrelato universal. Egberto é virtuoso sem ser cansativo e sem ofuscar os arranjos e a banda.

Dança das Cabeças, a primeira faixa, traz Egberto usando e abusando dos sintetizadores arp odissey II, obehaim, moogs e derivados, explorando timbres e extensões interplanetárias. Além dos teclados ele utiliza um phase em seu violão de oito cordas, criando ambiências estratosféricas. As músicas seguintes: “Café”, “Carmo”, e “Conforme a Altura do Sol” formam uma espécie de suíte de cerca de vinte minutos de pura viagem astral, com harmonias intercaladas e passagens climáticas seminais, verdadeiramente progressivas. Um marco. A experiência auditiva dessas músicas é sem explicação. É extasiante.

O contraste com a parafernália eletrônica fica por conta da cozinha, completamente acústica, com a fábrica de ritmos de Roberto Silva, um dos maiores bateristas do mundo, e o baixo acústico de Luís Alves,que vai além da metafísica. Para completar essa usina sonora o sax soprano de Nivaldo Ornellas, com seus timbres experimentais, transfere tudo para a música de vanguarda. Mauro Senise e Danilo Caymmi tocam flautas, complementando essa aula de música. Em algumas passagens Egberto faz um arranjo para as vocalizações de Dulce Nunes, na música “Carmo” e Dulce Nunes e Joyce em “Baião do Acordar”, transformando tudo em magia, em encantamento.

Depois de misturar jazz, progressivo, baião, bossa e mpb, o disco mergulha nas águas misteriosas das cordas, especialmente em “Polichinelo” e “Baião do Acordar”, com Egberto Gismonti revelando todo o seu lado erudito, sem pedantismo. São texturas delicadas, com cores nítidas de Villa-Lobos e impressionismo etéreo. As orquestrações arranjadas por Gismonti são refinadas e traduzem a contemporaneidade de um músico e compositor em estado de graça, muito bem definida pelo título do disco. “Corações Futuristas” é um disco obrigatório.