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quinta-feira, 24 de junho de 2010




Clássicos

Nuvem Cigana
Lô Borges


Esse disco faz parte de inúmeras listas dos discos inesquecíveis da música brasileira e universal, por se tratar de uma verdadeira inspiração delicada e complexa, sem alardes e sem malabarismos. Esse é o jeito de ser e estar do Clube da Esquina: ambientações etéreas, camadas sonoras, encadeamentos harmônicos inusitados e muito clima para viajar nas letras, nas melodias e nas sonoridades.

Nuvem Cigana é o quinto disco de Lô Borges, nascido como Salomão Borges Filho, em 1952, em BH. Lô Borges é dono de algumas raridades musicais brasileiras, cheias de uma sensibilidade privilegiada. Com Milton Nascimento, em Clube da Esquina, lançado em 1972, ele espantou os velhos jargões, com apenas 19 anos. Em seu primeiro disco solo, lançado em 1973, Lô Borges - o conhecido disco do “tênis”, ele ousou e experimentou, além do seu tempo. Em A Via Láctea, de 1979, ele mergulhou na mais pura harmonia. Com Os Borges, de 1980, ele revelou intimidades. Em 1982, com Nuvem Cigana, ele deitou em uma cama de sonhos e deixou o encantamento lá.

Delicadeza é a melhor tradução para esse disco. Palavras como nuvem, sol, vento, ares, voar, sonhar estão presentes em todas as faixas. Todas ao mesmo tempo ou em grupos interligados. Mas esse é um disco para fazer voar, nunca para revoar. Aqui o espanto fica por conta da descoberta de inúmeros detalhes, que vai acontecendo ao longo das audições. Esse é um disco de espaços, para ser ouvido no volume máximo, ao pé de uma serra, se for a da Flona, melhor ainda. Esse é um disco de harmonias em cascatas, que se derramam sobre seres vivos e ativados. Esse é para emocionar, para sentir saudade, para se completar em outra parte.

Nas dez imperdíveis músicas de Nuvem Cigana você vai encontrar um pouco de Beatles, um pouco de rock progressivo, um pouco de jazz, um pouco de música clássica, um outro pouco de música sacra, mais ainda um pouco de vocais inusitados, mas nenhuma obviedade e nenhum clichê imediatista da mbp. Além disso, você vai encontrar um montão de talento e generosidade lisérgica, que vai garantir a sua viagem para qualquer lugar mágico. A primeira audição desse disco pode não impressionar, pois ele é feito de detalhes. Se a música em sua vida não é apenas uma trilha de comercial, esse disco é uma verdadeira reserva de criatividade especial.

Músicas como “Todo prazer”, “A força do vento”, “Uma canção” e “Nuvem cigana”, servem tanto para curar velhas feridas como para embalsamar a alma. De fato, esse não é um disco para principiantes, não tem melodias fáceis e nem instrumentação simplória. Mas, quem tem bom gosto não precisa de maiores esclarecimentos, é só apertar o play e viajar, suba além da vegetação, aproveite bem as termas e deixe o vento se apresentar como o rumo. Lembre-se de não colocar cinto de segurança e esqueça completamente qualquer saída de emergência, você não precisar de nada disso.

Além de toda essa riqueza de composição, harmonia e melodia, ainda existe a genialidade de participações sempre geniais de Wagner Tiso, Toninho Horta e Flávio Venturini, responsáveis por texturas delicadas, arranjos inspirados e passagens memoráveis, como por exemplo, o solo de guitarra de Toninho Horta na instrumental “Vai, vai, vai”, capaz de provocar arrepios no mais sórdido forrozeiro de plantão. Realmente esse é um disco sobre nuvens.

Ficha Técnica


1- Todo Prazer (Lô Borges e Ronaldo Bastos).
Guitarra – Fernando Rodrigues, Lô Borges e Luis
Cláudio Venturini; piano – Telo Borges; sintetizador –
Flávio Venturini; bateria – Mário Castelo; baixo
elétrico – Paulinho Carvalho.

2- A Força Do Vento (Rogério Freitas). Guitarra –
Fernando Rodrigues, Lô Borges; piano elétrico – Telo
Borges; baixo – Paulinho Carvalho; percussão –
Robertinho Silva; bateria – Mário Castelo; percussão
– Aleuda; arranjador – Toninho Horta.

3- Vida Nova (Lô Borges e Murilo Antunes). Guitarra e
violão - Lô Borges; piano elétrico – Telo Borges;
baixo elétrico – Paulinho Carvalho; bateria – Mário
Castelo; guitarra e arranjo – Toninho Horta.

4- Vai, Vai, Vai (Lô Borges). Violão, vocal e viola de 12
cordas – Lô Borges; baixo elétrico – Paulinho
Carvalho; bateria – Robertinho Silva; caxixi, guitarra
e vocal – Toninho Horta.

5- Uma Canção (Lô Borges e Ronaldo Bastos). Violão
ovation – Lô Borges.
6- Nuvem Cigana (Lô Borges e Ronaldo Bastos).
Guitarra – Fernando Rodigues, Lô Borges; bateria e
pandeiro – Robertinho Silva; baixo elétrico –
Paulinho Carvalho; piano – Telo Borges; arp –
Wagner Tiso.

7- Ritatá (Telo Borges). Percussão – Aleuda e
Robertinho Silva; baixo elétrico e vocal – Paulinho
Carvalho; arp – Wagner Tiso; guitarra – Toninho
Horta; bateria – Mário Castelo; voz, vocal, arp e
piano – Telo Borges

8- Viver, Viver (Lô Borges, Márcio Borges e Murilo
Antunes). Bateria e Cuatro venezuelano – Beto
Guedes; percussão – Aleuda; arp e violão – Lô
Borges; voz – Milton Nascimento; baixo elétrico –
Paulinho Carvalho; piano – Telo Borges; percussão –
Robertinho Silva.

9- O Vento Não Me Levou (Lô Borges e Ronaldo
Bastos). Guitarra e arp – Lô Borges; arp – Flávio
Venturini; baixo elétrico – Paulinho Carvalho; bateria
– Robertinho Silva; percussão – Mário Castelo; piano
– Telo Borges

10- O Choro (Lô Borges). Violino – Alfredo Vidal,
Bernardo Bessler, Carlos Eduardo Hack, giancarlo
Pareschi, Walter Hack, Robert Eduard Jean Arnaud;
violoncelo – Jacques Morelenbaum, Jorge Kundert
Ranevsky (Iura); viola de arco – Arlindo Figueiredo
Penteado, José Dias de Lana; flauta – Mauro Senise,
Paulo Guimarães, Danilo Caymmi, Celso
Woltzenlongel; afoxé – Dazinho; ganzá – Fernando
Rodrigues; violão – Lô Borges; clarinete – Netinho;
piano – Telo Borges.

Produtor: Ronaldo Bastos.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010








Históricos


Living in the material world
A música etérea de George Harrison


Em seu terceiro disco, após o término dos Beatles, George Harrison continuava apresentando ao mundo a sua devoção espiritual e sua intensa dose de humanismo, turbinada com harmonia simples, melodias inesquecíveis, musicalidade sutil e certeira, além de um trabalho de guitarra slide simplesmente encantador, com a força de um mantra.

Esse disco fecha o ciclo de sucesso absoluto da primeira fase da carreira solo do principal músico dos quatro fabulosos, após a separação histórica da banda mais popular do mundo. Depois de dois álbuns triplos extremamente respeitados pela crítica e venerados pelo público mundial – All things must pass e Concert for Bangladesh – George Harrison chega ao ponto máximo da sua celebrada simplicidade sofisticada, com Living in the material world. Além de rebuscar ainda mais a sua busca intensa nos mistérios do Oriente, via Índia e seus gurus, George mostra toda a sua habilidade com melodias, incríveis melodias.

Esse é um daqueles discos imperdoáveis, que marcam a sua vida nem que você não queira, basta dar ouvidos. O tempo não importa para essa obra monumental. Os inúmeros violões acústicos, as diversas cores de slide e guitarra havaiana, as texturas dos pianos, as levadas maneiras de baixo e bateria, além de uma verdadeira avalanche de melodias inebriantes, fazem de Living in the material world um passaporte para o paraíso.

A faixa de abertura, Give me Love (give me peace on earth), é uma música eterna, com uma camada de violões acústicos e um arranjo de guitarra slide que são de pura magia, de encantamento. Essa é uma das maiores composições de todos os tempos, exatamente pela simplicidade. Imperdível. Inestimável. Sue me, sue you blues, segunda faixa, segue a mesma linha, um pouco mais rockeira e com slide ao violão. Da mesma forma imperdível. As duas faixas tão o rumo da viagem espiritual do disco, voltado para o mergulho oriental, em busca do equilíbrio, da paz e do amor ao próximo.

The light that has lighted the world, terceira faixa, é uma balada introspectiva e espiritual, com mensagem reflexiva e melodia intensa, com destaque maior para as teclas. Don’t let me wait too long, quarta faixa, é uma daquelas levadas de violão acústico que pregam em seu ouvido e inundam a sua alma. Você canta essa música junto, sem saber a letra, guiado pela melodia que tem um poder de encanto especial. Mais trabalho especial de slide e mais delicadeza fenomenal.

Who can see it, quinta faixa, é outra balada espiritual, com direito a guitarra com modulação, que ora parece phase mutron e ora parece um flanger saturado. A faixa seguinte é a que dá título ao disco. É a que tem mais pegada de rock’n’roll. Conta com a participação especial de Ringo, dobrando a bateria com o também lendário Jim Keltner . A faixa é bem humurada, mas não deixa de ter a sua crítica aos hábitos consumistas. Tem belos solos de sax e slide.

The Lord loves the one (that loves the Lord), sétima faixa do disco mantém também a reflexão espiritual e mantém também o encantamento. Mais slide e mais melodia mágica. Essa é uma daquelas faixas que vai se infiltrando aos poucos em sua memória, para nunca mais sair. O trabalho de metais dessa música é também duradouro, resiste facilmente ao tempo. Be here now, oitava faixa do disco, é lenta e profunda, própria para ser ouvido com a alma. Existe nessa música uma camada de órgão impressionante.

Try some buy some, oitava faixa, é a que tem melodia mais próxima dos Beatles, acompanhada pela textura intensa de uma orquestra inteira. Grande momento do disco. The Day the world gets round, também traz acompanhamento envolvente de cordas e também tem seu foco voltado para a devoção. Essa é outra melodia registrada com a marca George Harrison. O disco termina de forma profunda e reflexiva com that’s all, única faixa em que a guitarra de George Harrison aparece de forma mais evidente.

Essa obra excepcional foi gravada em 1973, no estúdio da Apple, em Londres. Fizeram parte desse pergaminho Nick Hopkins e Gary Wright nos teclados; Klaus Vourmann no baixo; Jim Keltner na bateria, mais as participações de Ringo Starr e Jim Gordom; George Harrison nas guitarras e violões; Jim Horn no sax e flauta; e Zakir Hussein nas tablas. As cordas foram conduzidas por John Barham. Em 2006 e EMI lançou uma versão remasterizada desse disco, com duas faixas bônus. Não perca tempo, embarque imediatamente nessa viagem astral.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009



Clássicos

A música inquieta de James Blood Ulmer em
Are you glad to be in America
No início dos anos 80 um disco surpreendente sacudiu as bases do rock , do jazz, do funk e da cena punk. “Are you glad to be in America” é uma daquelas raridades eternas, que não envelhece com o passar dos tempos e dos modismos. James Blood Ulmer é um artista singular, com uma carreira de muitas produções e muitas facetas. Uma delas é essa liberdade sonora apresentada nesse objeto voador alucinado.

James Blood Ulmer apareceu para a música através do jazz e do soul, tocando sua guitarra semi-acústica de forma inusitada. Entre vários artistas dessa época, início dos anos 60, ele desenvolveu um trabalho significativo ao lado de Art Blakey e Joe Henderson, mas foi com Ornett Coleman que ele definiu sua pegada e sua visão musical. Era o período das vanguardas e das fusões dentro do jazz. Esses sotaques e tendências foram apresentadas por Ornette Coleman a James Blood Ulmer, que passeou por elas até chegar ao blues, estilo atual desse lisérgico guitarrista da Carolina do Sul.

James Blood Ulmer formou vários grupos, fez discos solos e participou em discos de uma pá de artistas. Sua discografia é longa e dividida entre o experimentalismo e a música de raiz. Na sua fase mais inquieta é possível encontrar facilmente a genialidade desse guitarrista negro, que tem estilo próprio e um som original, sem cópias e sem enganações de clichês prostituídos. Sua fase experimental não é para qualquer ouvido. É preciso ter cultura musical para entender e aceitar seus vôos rasantes e suas manobras vertiginosas.

Fora os seus discos solos, vale a pena conferir suas bandas revolucionárias: Music Revelation Ensemble com David Murray and Ronald Shannon Jackson; Phalanx, com o excepcional saxofonista George Adams; e a sensacional banda Odyssey, com o baterista Warren Benbow e o violinista Charles Burnham. Seus últimos três discos têm uma pegada de blues do Delta, sendo que o último Bad Blood in the City: The Piety Street Sessions (Hyena, 2007), foi produzido por Vernon Reid, guitarrista do Living Colour. Esse disco ganhou prêmios e foi considerado pela crítica como um dos melhores de todos os tempos. Mesmo assim James Blood Ulmer ainda se mantém à margem do grande esquema.

Are you glad to be in America é irônico e sarcástico o tanto quanto o título sugere. Nesse disco e em outros da mesma época, como Revealing (1977); Tales of Captain Black (1978); Freelancing (1981) e Black Rock (Columbia, 1982), James Blood Ulmer mistura free-jazz , rock , minimalismo, blues , soul, funk e música tribal numa só pegada alucinada de improvisação geral em estúdio. O clima é de música atonal, notas soltas e improvisações viscerais a partir de uma célula musical que se repete o tempo inteiro em diversas texturas.

Duas músicas são cantadas: jazz is the teacher (funk is the preacher) e a faixa título. As frases da guitarra de James Blood Ulmer soam descontínuas e fragmentadas, com timbre gordo , captadores duplos ligados no talo, sem aquela frescura de um chorus limpo , ligado em um combo poyitone, de som bem limpo e educado. Porra nenhuma disso. O som é cru e sem perdão. As escalas usadas pelo louco da Carolina do Sul são exóticas e ao mesmo tempo modais e pentatônicas. Ele não pensa em escalas quando toca, simplesmente mete a mão. Por isso fez sucesso na cena punk, só que ele sabe tocar e os sujinhos não.

Algumas das faixas mais piradas do jazz alternativo estão aqui nessa obra de valor inestimável. James Blood Ulmer juntou David Murray, no sax tenor; Oliver Lake, no sax alto; Olu Dara, no trompete; Amim Ali, no baixo ; e os bateristas Calvin Weston e Ronald Shannon e produziu o som mais tosco que uma banda de jazz pode tocar. Suas linhas progressivas de frases, que se repetem em contra-ponto ou simultâneas, parecem ter sido gravadas através de grandes compressores, que deixam tudo muito na cara, sem alternativas para o ouvinte, a não ser mergulhar de cabeça nessa lisergia geral. Escute qualquer faixa desse disco e sua vida de ouvinte não será mais a mesma, muito menos a sua concepção de guitarra.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009





Clássicos

Joelho de Porco 1978
Anarquia, pauleira e atitude

Esse é aquele tipo de disco que quanto mais obscuro fica, maior é a surpresa que você sente ao ouvir. Há quem diga que foi uma regressão da banda, depois do clássico São Paulo 1554/Hoje. Isso é pura frescura. É coisa de quem procura delimitar simetrias no rock, que já nasceu totalmente assimétrico. Esse disco é conhecido como o do paletó, como o engomado, ou como o da rosa, ou simplesmente desconhecido pela maioria, ou mais ainda, não reconhecido por muitos, o que é pior.

A banda começou em 1972, formada por Tico Terpins, lançou um compacto, em 1973, e quatro lps, respectivamente em 1976, 1978, 1983 e 1988. A banda teve várias formações desde a primeira móia: Tico Terpins: violão, guitarra base e voz; Walter Baillot: guitarra solo; Próspero Albanese: bateria e voz; Conrado Assis: guitarra, piano e voz; e Rodolfo Ayres: baixo e voz. As substituições foram acontecendo, saídas, entradas e retornos, mas o estilo se manteve fiel às influências do hard rock, da contracultura e do anarquismo punk, sem militâncias ou amarras a rótulos.

Muitos falam que o disco mais importante da banda, a melhor pegada e o mais pauleira de todos é o “São Paulo 1554/hoje”, primeira bolacha do bando, realmente um grande disco, histórico. Eu prefiro o ambíguo “Joelho de Porco”, lançado em 1978, não só pela presença de Wander Taffo pilotando as guitarras, mas também pela presença inesquecível de Billy Bond. Esse disco traz algumas regravações de clássicos do primeiro disco e um breve repertório de inéditas. Os arranjos revelam a maneira brasileira de fazer rock’n’roll. Escutar essas faixas hoje é um misto de enciclopedismo e exercício de fugas, diante de um macabro perfil roqueiro tupiniquim.

Billy Bond já era um experimentado homem de frente no universo roqueiro. Giuliano Canterine é o verdadeiro nome desse italiano naturalizado argentino, que atormentava as boas famílias hermanos no final da década de 60 com a banda de rock pesado Billy Bond y La Pesada. Nessa época ele já era produtor de polêmicos shows, e já era persona não grata aos macacos da ditadura argentina. Essa sua bagagem artística foi responsável por alguns dos shows mais bizarros do rock setentista brasileiro. A ironia corrosiva já fazia parte da verve anarquista do Joelho de Porco, quando ele chegou para empunhar o microfone principal. Mas com ele a coisa tomou um ar satírico, cínico, canastrão, meio cafajeste, meio pervertido.

A formação da banda nesse disco é Tico Terpins, extremamente carismático e inteligente, no baixo e vocais; Wander Taffo nas guitarras elétricas e acústicas; Juba na bateria, Paulo Stevez nos teclados e Billy Bond nos vocais e na putaria. O som é paulada do começo ao fim. Quando digo paulada eu não digo heavy, eu digo pegada, eu digo atitude, eu digo estética, propósito, meta. A primeira música dessa obra rara é “O Rapé”, de linguagem cifrada, uma crônica sobre a vida marginal dos anos setenta e as ligações psicodélicas. Logo nessa faixa Wander Taffo mostra suas armas. Timbre valvulado, com solo turbinado por um phase de leve. A pegada é hard, mas tem um leve toque progressivo.

“São Paulo By Day” é a primeira regravação do primeiro LP. Mudanças de andamento e interpretação irônica pontuam essa outra crônica paulistana. O final dessa música é hilariante, a fusão de um hino religioso com a rude realidade da metrópole provoca um contraste no mínimo tosco. É para ouvir no talo, com os falantes berrando. “Paulete Mon Amour” é uma espécie de country-folk, acústica, cínica e simpática. É mais uma crônica da marginalia paulista. Na voz andrógina de Billy Bond ficou muito massa. A quarta faixa do disco é a incendiária “Rio de Janeiro City”, que começa com Wander Taffo torrando a escala da guitarra em um solo insano. Essa é para ser tocada em P.A., coloque no repete e balance o cabeção que você viaja. Stevez também faz um puta solo de órgão.

“Feijão com Arroz” lembra algumas coisas obscuras de David Bowie. É outra crônica dos esquecidos em forma de rock’n’roll, com direito à citação de Maysa e autoflagelação de Billy. “Aeroporto de Congonhas” é outra regravação do primeirão. É um verdadeiro clássico do rock brasileiro. Imperdível. Crônica corrosiva do processo de aniquilação urbana de São Paulo. Porrada na cara dos que não fazem nada. “Golden Acapulco” é sátira pura ao chamado espírito purista do rock, com direito a citação dos Beatles e Mexico Lindo, deles mesmos.

“Boeing 723897” é outra regravação, como também é outro clássico do cancioneiro rebelde da república dos abandonados. Essa é para ser ouvido no volume mais alto possível. Várias citações aparecem nesse arranjo. Wander Taffo faz um impagável e verdadeiro solo alucinado em 6/8. “Mandrake” é a faixa que fecha o álbum num carnaval satírico, com a concessão cínica de Nelson Rodrigues e Chacrinha. Essa faixa enterra de vez qualquer aspiração heróica da música popular brasileira. Existem discos essenciais para se compreender que nada deve ser essencial ou supremo, que tudo não passa de uma grande farsa. Esse disco é um deles.

sexta-feira, 31 de julho de 2009



O Barulho do Sol do Meio Dia
Pantico Rocha e Marcus Dias


Eis um disco que traduz com correção o que de mais significativo está sendo feito no pop brasileiro. A parafernália musical de Pantico é mais atual do que qualquer fastfood que sirva a bossa-nova requentada com aparatos eletrônicos. Esse Barulho é independente, nascido às margens do grande esquema circense montado na música popular brasileira. Não é um lançamento, mas é novíssimo, sem invencionice e sem complexo de Mary Shelley.

O caririense Pantico Rocha é um músico de primeira grandeza, com um currículo impecável junto a nomes consagrados da MPB. Hoje ele integra a banda de Lenine, a mesma que está presente em O Barulho do Sol do Meio Dia, com todo o peso da modernidade. A produção do disco ficou ao encargo do inimitável Jr. Tolstoi, o mais antenado guitarrista pop brasileiro, o bruxo dos timbres, o feiticeiro das ambiências, o mágico das colocações econômicas e texturas etéreas. Jr. Tolstoi reinventou o conceito de virtuose.

Marcus Dias é o parceiro das letras, é o poeta, dono das visões inclusivas. Pantico pilota a sua bateria metrônomo com um swing impagável e precisão cirúrgica. Guila é quem fornece o chão, através do seu baixo arquitetado para o time jogar no ataque o tempo todo. Jr. Tolstoi é responsável pelo encantamento acústico e elétrico, além das guitarras ele toca mini-moog. O disco ainda conta com as participações especiais de Lenine, Pedro Luís, Catatau e Silvério Pessoa.

O disco abre em grande estilo com a música título. Pantico não é um grande cantor, mas não compromete em nada, mesmo porque ele canta bem melhor do que muitos por aí, que se dizem do ofício. Os delays de Tolstoi criam a sincronia dos universos derivados da letra levemente fantástica de Marcus Dias. São texturas por cima de texturas, ponteadas por ripinique hipnótico tocado por Pantico. No final da música Tolstoi extrai uns ganidos exóticos de um pedal whammy. Essa faixa é preciosa.

“A visita” é uma faixa de letra inusitada, que lembra de imediato as viagens de Itamar Assumpção. Trêmulos e alavancas leves dão ambientação ao inesperado da letra. “Sambinha de chinela” é um samba bem sincopado, com uma guitarra com delay envolvendo a melodia. Lenine empresta a sua voz e o seu talento especial a esse samba de Pantico. “Resenha” tem letra filosófica e voz modificada de Pantico. Essa faixa tem a marca e a guitarra de Fernando Catatau, guitarrista e líder do Cidadão Instigado, uma das bandas mais originais do universo alternativo brasileiro.

“Conchavo” tem peso e medida. É uma das faixas em que a influência de Lenine se mostra mais forte, alternando distorção e arpejos de guitarra limpa. “Balança” é acústica e deliciosamente de terreiro, malandra e maliciosa. Tem a participação e a pegada peculiar de Pedro Luís, conservado em ironia constante. “Vamos empatar” é climática, cheia de texturas, ambiências e timbres descolados de guitarra, com bateria extremamente econômica, mas fundamental. Esse é um dos grandes trunfos de Pantico: a versatilidade.

“Ilha” tem a orquestração diferente de todas as outras faixas, com acordeon, corn inglês e guitarra. É a mais poética de todas, voltando ao tom fantástico da primeira poesia. Imperdível. “A ceia” é meio caribenha, meio creole, sem ser por inteira, apenas sugerida, com letra intelectualizada, cheia de citações. “Os Lobos” é simplesmente irresistível, com pegada rockeira de primeira linha. A guitarra de Tolstoi é de um swing único nessa faixa. Essa é aquela para ser detonada numa penca de decibéis alucinados. “Côco sabido” fecha o disco em grande estilo, da mesma forma que ele foi aberto em solenidade. Tem a participação de Silvério Pessoa. Essa faixa é descaradamente nordestina e também invocadamente irresistível.

O grande lance de Pantico em seu disco é que ele não é ególatra. A bateria tem o seu lugar de bateria. Pantico não se esforça, de forma nenhuma, em chamar a atenção para o seu instrumento, sendo ele um dos melhores bateristas brasileiros da atualidade. Esse é um disco de composição, é um disco de parceria, de cumplicidade. É um disco sem armações. Feito por quem estava muito à vontade para fazer. E por isso mesmo ele ficará, pois não tem data de vencimento.

quinta-feira, 30 de julho de 2009



Macaco Bong
Instrumental sem macacada


Uma surpresa boa sempre rola bem. Quem me apresentou o som do Macaco Bong foi Manoel Barros, velho amigo de inúmeras viagens sonoras, transubstanciadas no velho Cariri cearense, com os pés sempre alocados no universal. Combatemos juntos na trincheira cultural dos sebos, eu com o Et Cetera e ele com o Alan Poe. Ele resiste firme com o Solaris, reduto de cultura e bons tempos. Sempre nos encontramos e falamos sobre música e a mercadoria sonora, essa puta velha, cheia de truques e manhas seculares. O Macaco apareceu no último encontro.

O Power trio cuiabano surpreende de várias formas. É rock instrumental, mas não é pirotecnia guitarrística esclerosada dos fritadores de plantão. É independente, mas não tem parentesco nenhum com a merdologia indie que assola os universos paralelos e alternativos. É fora do eixo sul-sudeste, mas não tem a pretensão de resgatar porra nenhuma da cultura popular. Além disso, não cabe em nenhum rótulo ou tags existentes na falida imprensa especializada. Macaco Bong é rock instrumental sem macacadas e sem a sombra sorumbática da virtuose. O que já é muita coisa.

A banda já foi um quarteto e já lançou dois Eps. Macaco Bong nasceu em 2004, em Cuiabá (MT). Recentemente a banda lançou o seu primeiro cd “Artista Igual Pedreiro”, que faz parte do excelente projeto do selo Trama: Álbum Virtual da Trama, em que você tem disponibilizado trabalhos integrais de artistas com downloud grátis, inclusive com direito a capa, fotos e extras. São iniciativas como essas que mantêm arestas para a verdadeira música respirar livremente, em meio ao intenso mercado escravo dos jabás. Eis o endereço da redenção: http://www.tramavirtual.com.br/. O endereço específico da banda Macaco Bong é : http://www.tramavirtual.com.br/macaco_bong.

Atualmente a banda é integrada por Bruno Kayapy (guitarra), Ynaiã Benthroldo (batera) e Ney Hugo (baixo). O som que essa garotada faz é uma mistura de rock, jazz, psicodelia, hardcore, noise, hard e pop. As dez faixas do disco apresentam uma verdadeira parede sonora, com texturas modais, mudanças de andamento, ruídos, climas, dinâmicas e tensões sonoras da mais fina origem da vagabundagem musical do rock’n’roll. Os timbres mudam, mas não com tanta freqüência. Praticamente não existem solos, só em duas músicas: “Bananas For you all” e “Compasso em ferrovia”. O som do Macaco Bong é para quem não se preocupa em encontrar a peça mais intelectualizada ou a composição mais fodona do universo.

Os destaques ficam por conta da magnífica “Fuck you lady”, com belas passagens acústicas e climas em oitavas de muita inspiração. A super densa, dissonante e psicodélica “Noise James”, com uma pegada de peso, com uma guitarra saturada na válvula e mudanças de timbres sutis. A super climática, com belo tema em oitavas e timbre de guitarra praticamente limpo, “Bananas For You All”, com direito a um solo econômico, com texturas de delay e chorus. E a mais surpreendente de todas, “Compasso em Ferrovia”, climática, meio jazz-rock, com solo modal e um sustain de guitarra infinito, que prenuncia uma parede experimental de ruído e tensão.



Macaco Bong é a prova de que nem tudo está perdido na cena rockeira brasileira. Se por um lado o rock brasileiro vive do pastiche comercial de bandas como NXZero e outras porcarias do gênero, por outro lado o caminho indie é repleto de porcarias que imitam outras porcarias gringas. Mas existe um caminho do meio, bem ao estilo Macaco Bong, capaz de proporcionar prazeres inimagináveis, com ou sem trocadilho.

quarta-feira, 3 de junho de 2009



Caetano Veloso em Juazeiro do Norte
A sagração da iconoclastia

O dia 30 de maio de 2009 entrou carnavalescamente pela porta dos fundos da história cultural da tribo Cariri. Uma das cenas mais grotescas já encenadas no teatro rabelístico caririense anunciou a premência do burlesco: quando Caetano Veloso entrou no Palco da Aplausos, encontrou uma platéia com mil e uma cadeiras de plásticos na cabeça. Estava fundada, pois, naquela noite sem devolução, a versão da inversão.

Além da alegórica transferência localizada da bunda e do assento, Caetano Veloso inverteu muito mais, colocou no lugar da província o universal; a arte no lugar da desarticulação; no lugar da idolatria a iconoclastia; o ontológico no lugar da antologia; no lugar do envolvido ele colocou o evoluído, que trouxe consigo o futuro para uma imensa parte daquela gente presa ao passado mumificado. Assim a chuva demonizada em forma líquida, indesejada pelas pranchinhas e pelo brilho fácil das jóias folheadas, veio em forma de uma inesperada inundação estética civilizatória, provinda de uma banda pós-moderna e de um artista atemporal.

Quem foi para o show esperando encontrar um Caetano milagreiro, capaz de reacomodar o que já estava acomodado nos recônditos miseráveis dos barzinhos de ponta de rua, encontrou um Veloso exorcista, capaz de reduzir a migalhas os seus demônios cultivados e os demônios incultos, possuidores de boa parte da platéia, que confundiu espetáculo musical com evento social e ingresso com convite para a proclamação da inutilidade da primavera no baile do Lions Club, só faltaram as doações generosas de alimentos não perecíveis para as vítimas – coitadas - das cheias, elas mesmas.

Caetano Veloso estava e sempre esteve íntegro artisticamente. Com um repertório impecável para quem o concebe livre para criar e um repertório imperdoável para quem o conserva cativo para lembrar, Caetano cantou, dançou e profanou a sagração dos medíocres. A maioria das músicas do repertório do show está no disco novo “Zii e Zie”. A parte menor das músicas do repertório, e nem por isso minúscula, faz parte do período do exílio do compositor e de outras fases de sua carreira extensa e internacional, com mais de quarenta discos de inéditas lançados no mercado interno e externo.

Mais pitoresco do que os guarda-chuvas na platéia, que lembraram as arquibancadas do Romeirão em dia de Icasa e Guarani, foram as reações dos “emergentes”, imbecilizados pela falta de civilidade e enfeitados pelo excesso de penduricalhos inócuos, ao vaiarem e apuparem Caetano Veloso com expressões como bicha e outras idiotices, a cada música nova apresentada. Enquanto isso, do outro lado, no avesso desse universo de baixarias, outra parte do público se deliciava com aquela chuva fina, sutil e translúcida de talento, competência, profissionalismo, estética contemporânea e arte, que Caetano Veloso e a Banda Cê, fizeram cair sobre a Aplausos, para lavar de uma vez por todas o lixo cultural que ainda teimava em ecoar entre aquelas paredes.

Mas essa postura com requinte de camelódromo e de cobrador de van, apresentada por uma boa parte da platéia de grife, é mais do que compreensível e lamentável, pois quem tem sido educado intensamente pela filosofia de cabaré e álcool dos Aviões do Forró, Solteirões do Forró e outras macacadas do forró, não poderia jamais reagir positivamente à poesia de vanguarda de Caetano Veloso, principalmente em uma roupagem tão refinada e alternativa proporcionada pelo trio Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes, respectivamente, guitarra e baixo, bateria, piano e baixo. Seria tão impossível quanto esperar de um vendedor de discos piratas da São Pedro uma conceituação sobre o dodecafonismo de Schoemberg. Não é à toa que ele foi vaiado em Fortaleza também, pois filha de peixe piranha é.

Caetano Veloso se renova a cada ano e se distancia a cada ano do grosso de sua antiga platéia dos anos 60, 70 e início dos 80. A maioria nunca ouviu falar em Artic Monkeys, Pixies, Sofa Surfers ou Cidadão Instigado. Bem antes do disco Cê, de 2006, que Pedro Sá é o escudeiro de Caetano Veloso. Com ele veio a pegada mais roqueira, mais dissonante, mais distorcida e mais experimental. Mas experimentalismo não é novidade para quem protagonizou o Tropicalismo e lançou discos como Araçá Azul e Jóia. Dessa vez, em lugar do concretismo na poesia e da estética hippie na música, está o existencialismo político e o minimalismo dissonante, que Pedro Sá trouxe como herança da banda carioca “As Mulheres que só dizem sim”.

Ver e ouvir Caetano Veloso em plena criatividade foi ter certeza que ele é, sem dúvidas, um dos mais importantes artistas brasileiros de todos os tempos, não só pelo serviço prestado, mas também pela continuidade de um caminho completamente alheio ao óbvio e ao pastiche. O que se viu no palco da Aplausos foi um artista vivo, atuante, diametralmente oposto ao conformismo, livre do exibicionismo, do virtuosismo e do formato comercial. A partir da perspectiva imobilizada dos museus e afins, bem como do asseio anômalo dos entrepostos de verduras e contrabandos do Paraguai, nada mais natural do que boa parte da platéia não ter entendido nada, inclusive a dedicatória de duas músicas em memória de Augusto Boal.