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segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Clássicos

As baladas atormentadas
De Nick Cave

Nick Cave é cavernoso no próprio nome artístico. Mas a procedência cavernosa de Nick Cave não é pose. É existencialismo destilado em cinismo, em sátira, em carnavalização religiosa e questionamentos sociais e metafísicos. A mente humana para Cave é uma partitura, que ele mergulha com seu piano alado, muitas vezes muito próximo do piano que Murilo Mendes faz a sua mãe tocar em pleno caos.

“Murder Ballads” foi lançado em 1996 e traz em sua estética refinada, dez baladas sobre assassinos e assassinatos. É uma mistura de músicas do cancioneiro tradicional, composições suas e um cover irônico de Bob Dylan. Esse não é um disco comum e de forma nenhuma é destinado ao escutador medíocre. “Murder Ballads” tem um tom inquietante de esquina suburbana numa madrugada qualquer, enquanto a cidade espera baixar a fuligem do asfalto.

Na voz de Nick Cave as atormentações humanas dão um salto para além do cadafalso. O tema por si só já proporciona desdobramentos inusitados. A maneira como Cave aborda o tema acaba multiplicando essas possibilidades ao impossível. São detalhes sonoros, são entonações, são timbres arranjados exatamente para evocarem sensações das mais diversas, são ruídos perturbadores, são baladas que não são baladas, são universos paralelos dentro de uma regência mágica, que só Nick Cave poderia ter concebido. “Murder Ballads” é uma aula histórica de tensão artística.

A epifania e a catarse estão presentes em cada história contada. Remexer o lado obscuro da mente humana através da música requer requinte sentimental. E isso Nick Cave tem de sobra. O seu som é inebriante, o seu carisma vai desde um porra louca desses perdido numa multidão de concreto até à placidez intocável das paisagens bucólicas do imaginário coletivo. Esse é um disco que vai além da audição e atinge os aparatos ritualísticos da pós-modernidade, com todos os seus viadutos e imagens de alta-definição, bem como muquifos e becos existenciais.

“Song of joy” abre essa viagem soturna em tom profético, com uma carga dramática digna da apologia musical de Nick Cave and The Bad Seeds. Essa é uma das maiores obras-primas da música pop. Ela conta a história de um homem que tem sua mulher e suas três filhas assassinadas por um maníaco que escreve versos de Milton com o sangue das vítimas. É impressionante a textura criada pela banda. O guitarrista Blixa Bargeld consegue ilustrar o sofrimento daquele homem através de ganidos e espasmos de seu instrumento. A poesia dessa faixa é genial.

“Stagerr Lee” é uma música do cancioneiro tradicional, que aqui recebe um arranjo matador, sem trocadilhos. Existe um encantamento extremamente cínico nessa música. Sensações arrebatadoras podem ser notadas saindo dos auto-falantes como balas avermelhadas indo em direção à decadência do ser humano. Essa música narra um crime passional do cafajeste “Stagerr Lee”, com Blixa Bargeld extrapolando em sua estética minimalista de extrair sons esquisitos de sua guitarra.

O disco tem participações mais do que especiais, além da própria imanência da banda The Bad Seeds, na sua mais alta perfomance. P.J. Harvey faz dueto com Nick Cave em algumas faixas, com destaque para a belíssima Hanry Lee. A cantora australiana Kylie Minogue faz dueto com Cave na faixa “Where the wild roses grow”, responsável pelo sucesso de público e crítica desse cd. Essa é outra obra-prima do pop universal. Imperdível. Poesia em seu mais alto grau.

Depois de tantas idas e vindas sobre os rastros da alma humana, “Murder Ballads” encerra essa experiência transcendental com um cover de Bob Dylan, “Death is not the and”. Essa, que é uma das pérolas do repertório de um dos maiores poetas do mundo, recebe o tratamento ambíguo que seus versos exibem. É uma mistura de sátira e aconselhamento, alertando cinicamente que a morte não é o fim, nem como aniquilamento e nem como propósito.

Se você não conhece ainda esse disco, não perca a sua vida com futilidades, escute, compre e guarde e tenha as letras devidamente traduzidas. Insubstituível.

domingo, 24 de agosto de 2008




Clássicos

A rua misteriosa dos Stones

“Exile on main St.” é o típico album de rock cheio de mistérios. A própria banda foi envolvida ao longo da história por uma áurea de esquisitices e lances obscuros. E esse é justamente um dos encantamentos dessa banda, que é considerada por muitos como a maior banda de rock de todos os tempos. Há controvérsias.

“Exile on main St.” foi concebido como um disco duplo, com 18 músicas divididas em quatro lados. O clima difuso do lp começa pela capa, cheia de pequenas fotos aleatórias, cheias de bizarrices. Tal qual foi a gravação desse disco, que é uma mistura de sobras de estúdio, gravações guardadas entre 1968 e 1972 e material novo, composto para o lançamento.

As gravações foram iniciadas em um antigo banker da gestapo durante a Segunda Guerra Mundial, alugado por Keith Richards. Nellcôte, um antigo palacete localizado no interior da França, próximo à Nice, foi o palco de muitas histórias malucas. A piração tomava de conta do guitarrista, mergulhado em milhares de dólares investidos em heroína e todo tipo de droga existente. Lá eles receberam inúmeras visitas mais malucas ainda, como a de Burroughs, poeta beat; do novelista Terry Southern, também beat; e do compositor de country-rock Graham Parsons, falecido pouco tempo depois, vitimado por overdose.

Bill Wymam e Charlie Watts estavam em abstinência. Mick Jagger esteve ausente quase que o tempo inteiro, recém casado e com filho recém nascido. Keith Richards estava solto e comandou praticamente tudo. A zoeira foi tamanha que a polícia teve que exigir a expulsão das visitas intoxicadas. Logo depois de encerrada a temporada na França, o material foi levado por Mick Jagger para Nova York, onde inúmeras overdubs foram feitas por diversos músicos.

O resultado disso tudo é uma massa sonora tipicamente stoneana. Rock, soul, blues, booggie, shuffle, western e baladas formam o caldo desse disco de mixagem tosca e som cru, com a bateria de Charlie Watts como porto seguro. Esse é um disco para ser escutado no volume máximo, pois os instrumentos foram gravados praticamente na mesma altura dos vocais, causando um certo caos devido ao excesso de overdubs em muitas faixas. Tudo resolvido com alguns decibéis desaforados do seu som.

Mick Taylor salva inúmeras faixas com a sua pegada bluseira. Vários artistas tocaram contra-baixo, mas todos sem nenhum destaque. A guitarra de Keith Richards às vezes soa como seminal e às vezes soa completamente descartável. Mas o todo tem uma pegada incrível, inexplicavelmente genial. Esse álbum tinha tudo para ser péssimo, mas no entanto é uma verdadeira obra-prima, fruto dessa dialética de interesses e estéticas sonoras de seus músicos. Mick Jagger nunca foi um grande cantor, mas ele encanta e aqui a sua magia aparece de forma suprema.

“Rock Off”; “Rip this Joint”; “Tumbling Dice”; “Happy”; “Sweet Virginia” e “All Down the Line” são verdadeiros mísseis atômicos. Com certeza essa não será uma audiência normal, pois você sentirá um ambiente sonoro narcotizado o tempo inteiro, além do detalhe de você não entender praticamente quase nada do que Mick Jagger berra. Com o tempo você percebe que existem arranjos fenomenais de rock’n’roll por trás de tudo isso. A coesão da banda está exatamente nesse clima enfumaçado, difuso e tosco de se fazer música para ser ouvida em todo volume. Definitivamente esse não é um disco para conservadores ou puristas. Esse é o puro rock, igualado ao mesmo som alcançado por bandas como Faces, James Gang, Hot Tuna, ZZ Top, Neil Young e Crazy Horse, The Band e Rod Stewart em seus primórdios.

“Exile on main St.” é imperdível por diversos motivos: é um disco que exala mistérios; é um disco que fornece segredos sonoros a cada audição; é uma massa sonora de tirar o fôlego quando escutada no talo; e acima de tudo, é rock’n’roll na veia, com todos os requintes que o gênero proporciona. Esse é o tipo de disco que se você escutar uma vez, você jamais se livra. É um verdadeiro vício.

sábado, 23 de agosto de 2008





Históricos

A magia crua do
Creedence Clearwater Revival


O nascedouro da bicho-grilagem é a São Francisco maluca das décadas de 60 e 70. Músicos, escritores, poetas, pintores, e toda sorte de artista e vagabundo andavam por lá, atrás de uma penca de ácido pra ver vida mais colorida. Mas lá também é a fonte da magia musical do psicodelismo e dos seus desdobramentos. O som especial do Creedence vem de lá. Não é à toa que essa banda é seminal.

Em 1968 é lançado o primeiro disco do Creedence Clearwater Revival, tendo como título apenas o nome da banda, que foi retirado do nome próprio de um amigo de Tom Fogerty, Creedence Nubal, e de uma propaganda de cerveja: clearwater. O disco já trazia a pegada crua característica de algumas bandas do período. Além do som puro, valvulado, com amplificadores no talo, o Creedence tinha como amuleto o som rasgado da poderosa voz de John Fogerty, guitarrista solo, líder e compositor da banda.

Na realidade o Creedence é o resultado final de outras formações anteriores envolvendo John Fogerty, Stu Cook, baixista e Doug Clifford, baterista. Eles já foram The Blue Velvets, e Tommy Fogerty & The Blue Velvets, em 1959, e The Golliwogs, em 1964. Quando o selo Fantasy resolveu dar uma chance a eles o guitarrista base Tom Fogerty, irmão de John, tornou-se apenas integrante do grupo, o nome foi definitivamente trocado. Tom Fogerty já tinha um certo nome nas redondezas de “Frisco”, mas o seu som era muito careta, nada parecido com o que se tornaria o Creedence.

Guitarras Telecaster, Rickenbacker e Gretsch davam uma tonalidade de swamp rock, uma espécie de folk song eletrificado com rock’n’roll. Mas o Creedence era bem mais do que isso, era uma mistura de blues, resquícios do psicodelismo, música de protesto, improvisos e soft country. John Fogerty segurava a onda na frente da banda com seus solos pentatônicos e bluseiros e um vocal marcante, verdadeiramente impagável, com interpretações emocionadas e lendárias.

O primeiro disco da banda é um dos maiores discos de todos os tempos de vida do rock’n’roll, prenunciando uma carreira de muitas vendagens, sucesso de crítica e de público. Breve, com apenas sete discos oficiais, mas intensa, cheia de verdadeiros ícones da música pop universal. Várias gerações foram embaladas ao som do Creedence, que sempre manteve a sua pegada visceral e suas abordagens sociais e sentimentais.

O choque de egos decretou o fim da banda logo na primeira metade dos anos 70. O irmão Tom não aceitava o brilho intenso do líder. Tom morreu de aids - adquirida em uma transfusão de sangue, na década de 80 - sem falar com o irmão mais novo. Ambos tiveram alguns discos lançados individualmente. Tom era mais comercial e romântico. John é mais contestador e muito mais criativo e original, pena ele ainda sofrer problemas contratuais que o impedem de uma carreira mais profícua.

“I put a Speel on You” é uma balada estradeira fenomenal, arrasa quarteirões. Essa faixa é o cartão de visita de um dos maiores vocais do rock’n’roll. Coloque essa música no som do carro, em volume topado, pegue uma estrada reta, em cima da Chapada do Araripe, e encontre o nirvana, encontre o verdadeiro feitiço bradado a plenos pulmões por John. É sonzeira demais. Timbres limpos de guitarras, com leve trêmulo do ampli na guitarra de John e um vozeirão vindo do fundo da alma. Se você tá amando, cara, desesperadamente amando, redobre os seus sentimentos com esse mantra.

“Suzie Q” é um clássico, que na mão do Creedence ganhou vários minutos de improviso. John não é virtuoso, ele não frita o braço da guitarra feito rato de laboratório despombalizado. E é justamente por isso que ele é eficiente demais em seus solos sensitivos, embasados em puro sentimento musical. A banda faz a cama perfeita, com pegada na medida, nem peso demais e nem leveza demais. Imperdível. É pra balançar o cabeção o tempo inteiro.

O disco fecha com “Walk on the Water”, uma composição dos irmãos. Essa faixa tem o sabor de São Francisco, com um toque todo especial de fitas com rotações invertidas, bem ao gosto psicodélico, com direito a longa improvisação da banda. Não vou falar muito nem dessa e nem das outras faixas, justamente para você redescobrir esse tesouro. Os bons ventos anunciam reedições da discografia da banda, com remasterizações, faixas bônus e fotos inéditas. Dizem que é para o final do ano. É esperar pra comprar. Enquanto isso, aumenta aí, cara.

domingo, 17 de agosto de 2008





Achados e perdidos

Corações Futuristas
Egberto Gismonti Senhor do Tempo

Em meados dos anos 70 e primeira metade dos anos 80 o mercado fonográfico foi surpreendido com a evolução de um segmento instrumental logo rotulado de jazz fusion. Eram as trilhas abertas por Miles Davis e seus seguidores. Muitos conseguiram respeito e vendagens significantes. Outros não passavam de armações descaradas rumo ao musak, a trilha ideal para esperas de telefones e elevadores. É durante esse período que Egberto Gismonti constrói a sua imensa reputação internacional.

Vários músicos brasileiros estavam estabelecidos na gringolândia e participavam ativamente desse movimento, tais como Eumir Deodato, Raul de Sousa, Airto Moreira, Flora Purim e Sérgio Mendes, gravando com grandes nomes ou lançando seus próprios discos. Alguns moravam aqui, mas tinham contratos internacionais, tais como Hermeto Pascoal, Azymuth, João Donato, Baden Powell e Egberto Gismonti. A cena era propícia para fusões de todos os tipos: jazz, rock, samba, soul, funk, bossa, blues, tango, rumba etc.

A efervescência do mercado musical como um todo, proporcionou a sedimentação da globalização musical. Não eram apenas discos lançados internacionalmente, eram turnês mundiais, grandes festivais e fãs espalhados por todo mundo. Era a quebra das fronteiras, dos idiomas, das culturas, dos guetos musicais. Artistas do mundo todo comungavam o mesmo desejo de comunicação instrumental. Inúmeros discos descomunais foram lançados. Um deles é exatamente “Corações Futuristas”, de Egberto Gismonti, lançado em 1976, o nono em sua discografia.

Nesse disco o multiinstrumentista brasileiro faz uma fusão de jazz, rock, progressivo, clássico e música brasileira de altíssimo nível. Sem dúvida nenhuma, junto ao álbum “Slaves Mass”, de Hermeto Pascoal, “Corações Futuristas” é o lançamento mais emblemático do período. Com uma sonoridade acústico-eletrônica e uma orquestração fenomenais, o bolachão projeta Egberto Gismonti para a eternidade e o estrelato universal. Egberto é virtuoso sem ser cansativo e sem ofuscar os arranjos e a banda.

Dança das Cabeças, a primeira faixa, traz Egberto usando e abusando dos sintetizadores arp odissey II, obehaim, moogs e derivados, explorando timbres e extensões interplanetárias. Além dos teclados ele utiliza um phase em seu violão de oito cordas, criando ambiências estratosféricas. As músicas seguintes: “Café”, “Carmo”, e “Conforme a Altura do Sol” formam uma espécie de suíte de cerca de vinte minutos de pura viagem astral, com harmonias intercaladas e passagens climáticas seminais, verdadeiramente progressivas. Um marco. A experiência auditiva dessas músicas é sem explicação. É extasiante.

O contraste com a parafernália eletrônica fica por conta da cozinha, completamente acústica, com a fábrica de ritmos de Roberto Silva, um dos maiores bateristas do mundo, e o baixo acústico de Luís Alves,que vai além da metafísica. Para completar essa usina sonora o sax soprano de Nivaldo Ornellas, com seus timbres experimentais, transfere tudo para a música de vanguarda. Mauro Senise e Danilo Caymmi tocam flautas, complementando essa aula de música. Em algumas passagens Egberto faz um arranjo para as vocalizações de Dulce Nunes, na música “Carmo” e Dulce Nunes e Joyce em “Baião do Acordar”, transformando tudo em magia, em encantamento.

Depois de misturar jazz, progressivo, baião, bossa e mpb, o disco mergulha nas águas misteriosas das cordas, especialmente em “Polichinelo” e “Baião do Acordar”, com Egberto Gismonti revelando todo o seu lado erudito, sem pedantismo. São texturas delicadas, com cores nítidas de Villa-Lobos e impressionismo etéreo. As orquestrações arranjadas por Gismonti são refinadas e traduzem a contemporaneidade de um músico e compositor em estado de graça, muito bem definida pelo título do disco. “Corações Futuristas” é um disco obrigatório.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008


Os Cabinha
Uma banda inteira

Qualquer tese de mestrado ou qualquer digressão doutorável se perde diante da grandeza cultural que é essa pequena banda de lata formada por meninos da Fundação Casa Grande, organização não governamental de gestão cultural de Nova Olinda. Os Cabinha é irreverência pura. É o princípio desorganizador da compartimentação cultural. É a sopa dividida ao meio pela mosca matuta, conduzindo o povo criativo em um êxodo de fuga da seca musical que se abate por essas plagas seminais.

Rodrigo Alves, Renê Nascimento, José Wilson, Arthur Diniz e Iêdo Lopes têm entre 9 e 11 anos e 330 mil anos à frente de muita porcaria circundante, oficializada pelo cânone das emissoras-pinico caririenses. Eles não tocam nenhum instrumento de verdade, são todos instrumentos de lata e papelão. Eles não têm afetação nenhuma de grandes estrelas, mas tornaram-se a grande sensação musical do momento, apresentando o delicioso show “Música in banda de lata”, título tão criativo quanto o repertório de músicas próprias, apresentado em 45 minutos de pura diversão.

Essa meninada esperta dá suporte tecnológico para todas as etapas de suas produções musicais. Eles construíram seus próprios instrumentos, gravaram suas próprias músicas, pilotaram todos os equipamentos digitais e fizeram, eles mesmos, a mixagem do primeiro cd da banda. O show deles é mais do que mimésis. Eles podem fingir que estão tocando, mas nenhum público que os assista pode fingir que isso é cultura. Esse é o purgante que a arte contabilizada precisa para pensar melhor.

Eles foram mais longe ainda não só em palcos distantes, se apresentando em várias capitais e gravando com gente importante, como o novo cd que marca a volta do Aquarela Carioca, mas também na maneira de veicularem a sua arte. É possível baixar músicas deles no overmundo, no trama e no myspace. Além disso o cd da banda será vendido, com tecnologia SMD, a R$ 5 reais em máquinas da ONG Eletrocooperativa, instaladas em pontos estratégicos do país, dentro do projeto “Música livre e comércio justo”.

Isso é definitivamente mandar as lombrigas setoriais que invadem as instituições culturais pra casa do cassete. Isso é cultura viva, desempalhada, desprotocolada, desarquivada, desproporcionada, desempossada, destituída da imortalidade infértil dos vampiros culturais. Os hematomas criados nas partes periféricas e íntimas e escusas do corpo cultural caririense podem ser curados pelo despudoramento de ser autêntico desses garotos.

O ludismo de todo esse processo de assimilação cultural desses cabinha é vermelho, da cor do sangue da educação via cultura. Esse é o encantamento tão decantado pelo filósofo alemão Walter Benjamim, provando que não é preciso ser desprovido de intelectualidade para ser artista popular. Essa é a verdadeira reificação de que artista da terra é minhoca. Para os broncos restam os enlatados, os frios e os congelados, dispostos organizadamente em presépios, sem blasfêmias, dentro da data prevista de consumo pelo fabricante, em desfile solene na esteira fria dos caixas de supermercados.

Os Cabinha é riso puro, desdentado ou com dentes entramelados. Mas é boca aberta, com fome de saber. Não existe visão mais libertária do que ver a baba escorrendo dos lados dessa bocarra cultural. Serve para mim, serve para você e para aquele outro ali, com firma reconhecida e cadastro desempedido, serve para todos nós sabermos que arte não é questão de posse, é questão de vontade.

Os Cabinha on line: www.myspace.com/oscabinha - www.tramavirtual.com

domingo, 3 de agosto de 2008



Clássicos



Blues direto no coração

Esse é um disco que teria tudo para soar como mais uma armação de gravadora, uma vez que foi lançado após a saída de Coltrane do selo Atlantic. “Coltrane Plays The Blues”, é o resultado de sobras de estúdio do disco “My Favorit Things”, de 1961. Mas um músico da envergadura de Coltrane jamais gravaria qualquer tipo de armação. O material todo foi gravado em 1960, tendo sido lançado só em 1962, no formato de um disco só de blues.

Nesse disco John Coltrane toca um repertório autoral, sendo acompanhado por nada menos do que Elvin Jones na bateria, um dos maiores bateristas de todos os tempos, pela sua precisão e originalidade, coisa rara em um mar de diluições sonoras. Além de McCoy Tyner no piano, Coltrane conta com o baixista Steve Davis, para fazerem a cama necessária para o desfile de suas experiências modais, estilo depois amplamente copiado por uma enxurrada de músicos sem criatividade, espalhados por esse mundão sem cancelas.

Esse é um disco que toca o coração. É para ser ouvido a qualquer hora. Mas nada como um cair de tarde ou mesmo uma madrugada tranqüila, para que a magia desse gênio possa ser experimentada integralmente. O disco original conta com seis faixas essencialmente clássicas. Coltrane toca soprano nas faixas Blues to Bechet e Mr. Syms. Em Blues to Bechet, Coltrane presta uma oportuna homenagem a um dos pioneiros no sax soprano o genial Sidney Bechet, que o estimulou a fazer um verdadeiro ressurgimento do soprano para o jazz.

Já o relançamento remasterizado do disco traz cinco faixas a mais, são tomadas alternativas de Blues to Elvin, Blues to You e uma faixa sem título original, batizada por Exotica. Todas as faixas são simplesmente demais. Quando você tem realmente um músico original tocando para você, pode ter certeza que você está perto do céu. Esse é o caso de “Coltrane Plays The Blues”. Nesse disco ele demonstra sentimento e técnica, sem abandonar jamais a ousadia em seus improvisos.

O disco abre com Blues to Elvin, uma faixa com andamento lento, em que Coltrane começa o seu trabalho de hipnose do ouvinte. É fechar os olhos e viajar profundamente por outras paragens. São poucos os músicos que têm essa magia de fazer você entrar em órbita. Muitos têm habilidade técnica, mas pouco tem o poder do teletransporte. A segunda faixa, Blues to Bechet, é outro mantra, sem o piano de MacCoy Tyner, é um trabalho de Elvin Jones histórico.

A terceira faixa é um verdadeiro clássico. Blues to You, também não tem o piano de MacCoy Tyner, mas tem um trio simplesmente inspirado, com Coltrane tirando harmônicos do seu tenor e despejando frases por segundo, em grande improviso. Uma verdadeira visão particular dos modos gregos. Em Mr. Day, Coltrane apresenta a sua pegada típica das casas noturnas, cheia de improvisos alucinados e interessante trabalho com o mixolídio e uma série de escalas menores. Mais uma vez o duelo entre o tenor e a bateria torna-se história.

Depois vem outro mantra, Mr. Syms, com uma das melodias mais bonitas do repertório de Coltrane. Um tema simples, cheio de sentimento, com um Coltrane visivelmente influenciado pela música indiana. Imperdível. Um solo de piano invocado. Solos de soprano abstratos. Música por excelência. O disco original fecha com Mr. Knight, a faixa que tem mais influências de outras levadas, que pode ser definida como uma pegada latina-afro. Outra faixa memorável.

“Coltrane Play The Blues” é um dos discos mais importantes desse músico genial do jazz universal, que está colocado entre os grandes, como Miles Davis, Charles Mingus, Thelonious Monk e Charlie Parker. Coltrane tocou com inúmeros músicos e estudou diversos compositores, mas apresentou um estilo próprio, a sua marca, que ao longo dessa incansável estrada da música, foi diluída por inúmeros músicos sem originalidade.